Com os recentes testes para lançamento do e-yuan – a moeda digital oficial do país -, a China move pedras do tabuleiro do xadrez global das moedas e meios de pagamentos digitais e avança várias casas, tanto no mercado interno quanto no internacional.
No mercado interno, a China avança na busca de uma alternativa para equilibrar a dominância dos meios de pagamentos controlados por grupos privados (se é que algo possa ser totalmente controlado por grupos privados na China): o WePay, da Tencent, e o Alipay, do Alibaba. Eles representam em torno de 95% de todas as transações digitais do país. Os pagamentos mobile, com uso de celulares, representaram perto de 80% do total dos pagamentos digitais em 2018, segundo a eMarketer. Desde o início da pandemia, essa participação só aumentou.
No plano externo, a China busca criar protagonismo para o yuan, pois, apesar da representatividade do comércio internacional envolvendo o país, sua moeda é quase que desprezada por conta das restrições, regulamentações e dificuldades existentes quando comparada com o dólar e quase todas outras moedas de países desenvolvidos.
Importante lembrar que, apesar da pressão que tem sofrido, em especial dos Estados Unidos, as exportações chinesas de produtos de consumo representavam 42% do total global em 2018. Ao investir na alternativa do e-yuan, a China estaria buscando construir uma nova realidade, apostando nas facilidades e na previsível evolução envolvendo a adoção de moedas digitais nas transações internacionais.
O e-yuan foi promovido no Ano Novo Chinês, no início de fevereiro, quando prevalece a tradição de se presentear com valores em envelopes vermelhos – cor da sorte na cultura local. Foi testado mediante a distribuição de e-yuans para dezenas de milhões de sorteados.
Os recentes episódios envolvendo a intervenção do governo chinês no IPO da Ant Financial – o braço financeiro do Alibaba –, seguidos de um providencial afastamento de seu fundador Jack Ma por algumas semanas, deixaram clara a preocupação do governo com o poder paralelo criado pelos Ecossistemas, em especial Alibaba e Tencent, com sua capacidade de desenvolver e crescer negócios por seu modelo de organização e apetite para expansão local e global a partir do monitoramento do uso de suas plataformas de pagamentos.
Ao dar atenção à criação de sua moeda digital oficial, portanto controlada pelo governo, inibindo a expansão ainda maior do uso das plataformas digitais de pagamentos privadas, o governo da China adota a mesma postura cautelosa de governos ocidentais, que reagiram negativamente à proposta da Libra, moeda digital do Facebook, arquitetada para ser global a partir de uma aliança de entidades e plataformas privadas que assegurariam seu rápido protagonismo no mundo à revelia dos bancos centrais nacionais.
Da mesma forma como ocorreu no Brasil, quando o Banco Central inibiu o lançamento do WhatsApp Pay, alternativa de pagamentos do Whats App, antes do início das operações do Pix, a plataforma de pagamentos instantâneos e digitais sob coordenação e controle do BC. Mas o WhatsApp Pay virá em algum momento próximo para o mercado, facilitado graças à sua parceria com a Cielo, controlada por Banco do Brasil e Bradesco, moldado em sua forma de uso ao mercado brasileiro e monitorado e controlado pelo Banco Central.
Na China, com o avanço do e-yuan, a nova moeda digital oficial do país, e portanto de aceitação obrigatória, o domínio alcançado pelas plataformas privadas ficará limitado, dando ao governo condições de acompanhar seu uso, monitorar comportamentos e intervir sempre que necessário de maneira mais direta e rápida.
Quando pensamos em termos mais amplos, o que está em jogo é a condição de bancos centrais e governos manterem controle dos meios de pagamento, monitorar seus usos e, dependendo de cada realidade, poderem usar esse instrumento como meio de taxação de impostos, inibindo a informalidade e a evasão fiscal.
Esse aspecto envolve os mesmos temas que têm sido discutidos quando se debate a necessária evolução dos mecanismos de taxação das transações digitais precariamente controladas como no Brasil, que favorecem o crescimento da informalidade e desigual distribuição da carga tributária no País.
A China segue o Brasil no controle dos meios de pagamentos digitais, mas o Brasil deveria seguir a China na modernização dos instrumentos para maior justiça na distribuição da carga tributária entre negócios formais e informais.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem.
Imagem: Arte/Mercado&Consumo