O varejo não digital para um consumidor ainda não omni

Num país com dimensões continentais e imensas disparidades econômicas e sociais, infelizmente ainda existe uma leva significativa de consumidores que foram muito pouco ou nada impactados pela aceleração digital, tão propagada no varejo.

Para começo de conversa, o país tem 211 milhões de habitantes e 66 milhões de pessoas receberam, no ano passado, o auxílio emergencial do governo federal. Contabilizado o número de integrantes de uma família, o benefício chegou a incríveis 126 milhões de pessoas, ou seja, 60% da população brasileira, de acordo com o Ministério da Cidadania.

Esta imensa maioria de brasileiros está vivendo abaixo da linha da pobreza e pelo menos outros 20 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza extrema. Esses brasileiros que mal têm dinheiro para comer vivem em cidades e bairros servidos por lojas simples que praticamente não são impactados pela omnicanalidade. Afinal, estes consumidores não compram por um app de delivery e mal acessam a internet, e consequentemente não compram por estes meios.

De acordo com o Digital Market Outlook, o Brasil conta hoje com 17,3 milhões de usuários de apps de delivery. Menos que 10% da população. Um outro estudo, desta vez do Instituto QualiBest, aponta que 53% dos usuários que utilizam aplicativos de entrega de alimentação pertencem às classes A e B, 47% às classes C e D e 57% residem no Sudeste.

No e-commerce brasileiro, mesmo com recordes de vendas no ano passado, o varejo digital atingiu apenas 18,2% do total de pessoas com acesso à internet no País, segundo estudo da Neotrust/Compre & Confie.

Talvez a rede que mais simboliza o varejo não digital é a Lojas Cem. Fundada em 1952, esta rede varejista sediada em Salto, no interior de São Paulo, possui 300 lojas espalhadas pelos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná, emprega 12.130 funcionários e parece desafiar a cartilha dos especialistas em varejo.

Mesmo sem uma plataforma de e-commerce, algo visto como crucial pelos seus concorrentes Magazine Luiza e Via Varejo, a varejista de eletroeletrônicos e móveis manteve um ótimo desempenho no ano passado. Em 2020, obteve um faturamento de R$ 5,4 bilhões, apesar de ter tido quase todas as suas lojas fechadas por quase 100 dias durante o lockdown do comércio.

O balanço ainda não foi divulgado, mas e expectativa é que o patamar do lucro (que foi R$ 343 milhões em 2019) também se mantenha. E, contrariando a lógica dos meios de pagamentos digitais, impressionantes 70% das suas vendas ainda são realizadas no crediário, via carnê que só pode ser pago nas lojas (não pode ser pago em lotéricas ou em bancos!).

O fenômeno das Lojas Cem é, em parte, explicado pelo fato de ela ter muitas filiais espalhadas por cidades do interior, em lojas de rua. Elas atingem em cheio os consumidores das classes B, C e D que mantêm hábitos mais conservadores e tradicionais e gostam de tocar e ver a mercadoria e de conversar com um vendedor. E isso o digital ainda não conseguiu substituir.

Claro que a aceleração digital cresce a olhos vistos e não deve e não pode ser ignorada pelos varejistas em geral. É um fenômeno sem volta e que está sendo potencializado pela pandemia.

Mas num país tão desigual, com rincões de pobreza e com aspectos culturais conservadores e provincianos ainda presentes em algumas cidades do interior, por muito tempo as lojas físicas continuarão sendo a forma mais natural e conveniente para vender para uma fatia da massa de consumidores. Uma loja bem localizada, com produtos adequados e a presença de vendedores ou de atendentes com um belo sorriso no rosto e muita simpatia, ainda são fundamentais para os resultados de grande parte do varejo brasileiro.

Marcos Hirai é CEO da Omnibox, startup especializada em varejo autônomo
Imagem: Bigstock

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