Dois avisos: a vida não volta ao normal e o físico vai fundir de vez com o digital

Afinal, o que retorna ao que era e o que permanece como está quando a vida, algum dia, voltar ao normal? Essa foi a questão mais ouvida durante os seis dias da versão virtual do Big Show da NRF, mais importante encontro global do varejo, que aconteceu em janeiro.

Confesse: você também deve ter feito essa indagação em algum momento, não fez?

O que nem todo mundo percebe, ao menos conscientemente, é como a insistência nessa pergunta revela nossa imensa dificuldade em lidar com a mudança provocada pelo tsunami digital que arrasta por onde passa velhas convicções e transforma radicalmente a sociedade em que vivemos – e também a forma como fazemos negócios.

Durante o evento, alguns especialistas procuraram esclarecer com dados a dúvida sobre o que fica e o que volta. Melanie Noronha, responsável pela área de inteligência da conceituada publicação “The Economist”, mostrou que 61% dos entrevistados em pesquisa recente pretendem manter ao menos alguns dos hábitos adquiridos durante a pandemia. Os mais jovens puxam o índice para cima, mas 55% dos mais velhos também afirmaram que não voltarão totalmente à vida de antes.

Michelle Evans, da Euromonitor, foi na mesma direção e garantiu que 74% dos profissionais em empresas de produtos de consumo e varejo ao redor do mundo acreditam que o boom do e-commerce gerado pela crise se tornará permanente. Vale ainda citar Karin Tracy, do Facebook, que afirmou, sem medo de errar, que o comércio online está se tornando mainstream, o que em bom português significa ser o canal de vendas prevalente.

No entanto, a discussão entre a participação das lojas físicas e o e-commerce nas vendas totais do varejo parece destinada à irrelevância. Por um simples motivo: as fronteiras entre esses dois mundos estão se derretendo de maneira acelerada, sob o fogo escaldante das novas tecnologias.

Quer exemplos? Vamos lá.

O live stream shopping, aquelas sessões em que influenciadores ou especialistas interagem com você por meio das redes sociais ou plataformas de vídeo, para apresentar e vender produtos em tempo real, foi um dos temas de destaque nesta NRF. A ação permite levar clientes virtualmente para dentro da loja (ou a loja até eles).

Além disso, marcas importantes, como Estée Lauder e Lululemon, reportaram resultados muito positivos em ações de live consulting, ou seja, em interações individuais entre consumidores e especialistas da marca, por meio de chamadas de vídeo. Nesse contexto, a experiência do cliente melhora um bocado, mesmo que ele não esteja presencialmente na loja.

Porém, a dissolução das fronteiras entre lojas físicas e vendas online promete ser bem mais radical no futuro próximo. Quase ao final de sua boa apresentação na NRF, Andrea Bell, Diretora da WGSN, mandou um aviso discreto: fiquem de olho nas oportunidades do Metaverso.

Para quem não tem a menor ideia do que isso significa, aí vai uma breve explicação: Metaverso descreve um espaço virtual compartilhado que converge com a realidade física. A expressão apareceu pela primeira vez em 1992, no “Snow Crash”, romance de ficção científica (óbvio!) do americano Neal Stephenson.

Como exemplo de marcas que já exploram o Metaverso, Andrea citou Balenciaga, que lançou sua coleção de outono no formato de um jogo de realidade virtual, chamado “Afterworld: The Age of Tomorrow” (“Outro mundo: a Era do Amanhã”) -, que sintomaticamente começa em uma loja da marca, antes de levar os participantes para diferentes universos.

Até a Disney embarcou nessa viagem e apresentou o conceito do Disney Theme Park Metaverse em novembro, na conferência da IAAPA, importante associação da indústria de entretenimento. Em dezembro, os promotores do festival Complex realizaram um megaevento virtual, no formato de videogame, chamado Complexland, no qual as pessoas podiam assistir a palestras e performances, fazer compras e encomendar comida de restaurantes selecionados.

Alguns formatos mais simples de uso da realidade virtual ou aumentada já vêm sendo testadas. Pesquisa da Euromonitor, apresentada na NRF, mostrou que, além dos videogames, consumidores aos poucos vão se acostumando a também visitar um destino onde pretendem passar férias, a checar a qualidade de um quarto de hotel, consultar manuais 3D, testar o caimento de roupas ou o efeito da maquiagem e ainda visualizar como ficariam móveis na sala, sem precisar sair de casa. Com o Metaverso, essas experiências vão se ampliar radicalmente.

Pensando em tudo isso, fica mais fácil entender a impactante frase da britânica Kate Ancketill em sua palestra na NRF: “Temos de começar a aceitar que o varejo físico será um sistema de suporte para o digital e o e-commerce”. A loja física, neste contexto, passaria a funcionar como uma vitrine de produtos, local de experimentação e descobertas, ponto de relacionamento de uma comunidade construída em torno da marca, centro logístico avançado e ainda ponto de captura de informações dos clientes.

A transformação disso que um dia chamamos de “ponto de venda”, e que agora virou “ponto de interação”, obriga ainda a revisar perfil e atribuições das equipes de loja, reeducar todo esse pessoal e também, no caso brasileiro, repensar o sistema de remuneração, baseada primordialmente em comissão sobre vendas.

Outro alerta importante sobre o futuro do varejo foi oferecido pela italiana Christina Fontana, do Alibaba, que lembrou algo tão óbvio quanto essencial: “Ser digital não é apenas fazer vendas pela internet. O digital deve estar presente em cada camada da empresa, aumentando eficiência”.

É fato. O novo varejo, cuja chegada foi antecipada pela pandemia, exige perfeita integração da cadeia de suprimentos para permitir aos clientes acessar os produtos desejados na hora que quiserem, gerir dados dos clientes e personalizar ao máximo a interação entre marcas e pessoas.

Em resumo, a primeira versão virtual do Big Show da NRF revelou uma imagem nítida dos novos rumos do varejo. Essa estrada não tem ponto de retorno ou pistas separadas para viajantes analógicos e digitais. Quem não entender essa nova realidade corre sério risco de ficar pelo caminho.

Luiz Alberto Marinho é sócio-diretor da Gouvêa Malls
Imagem: Bigstock

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