Os mistérios do varejo da Índia – Parte 2

Por Marcos Gouvêa de Souza*

O varejo da Índia tem vivido profundas transformações nos últimos anos, sendo uma das mais importante delas a abertura de muitos shopping centers, muitas vezes um colado ao lado do outro, disputando o mercado de 1,2 bilhão de pessoas, dentro os quais 300 milhões, um Brasil e meio, de classe média e alta.

À despeito desse impressionante e atraente número de consumidores dessas classes, para os quais os novos shoppings têm sido criados, o potencial representado pelos outros 900 milhões, 4,5 vezes o tamanho da população brasileira, vive uma realidade muito diversa, atendida fundamentalmente pelos 16 milhões de pontos de venda que se espalham por quaisquer lugares e têm uma operação rudimentar, porém convivendo com práticas surpreendentes.

No país existem perto de 5,3 mil cidades, das quais 53 com população acima de um milhão de pessoas, que reúnem 32% da população urbana, porém representando pouco mais do que 60% do potencial de consumo total, e em torno de, incríveis, 6,3 milhões de vilarejos, que respondem pela população rural, 68% do total do país.

O que pode ser considerado varejo moderno na Índia representa apenas 3% no setor de alimentos e bebidas, 25% na área de duráveis e tecnologia, 10% em joalherias e relógios, 42% no setor de calçados e apenas 4% em farmácias e bem estar.

A modernização do varejo indiano na área de alimentação começou através dos investimentos dos grupos locais, especialmente na década de 90, porém foi com a chegada de operadores globais, como Metro, Walmart, Carrefour, Spar e Tesco, ainda que de forma controlada e limitada, que pode avançar um pouco mais a partir do início dos anos 2000.

Na área de Food Service as maiores corporações do mundo, como Burger King, Mc Donalds, Starbuck’s, Friday’s e praticamente todas outras estão presentes por conta da permissão de atuação através de franquias e dominam o mercado formal complementando milhões de operadores independentes e informais que atendem a população.

No setor não alimentar a presença de marcas globais no setor de vestuário e calçados, cosméticos, bijuterias é também relativamente recente, todas através de franquias, joint ventures ou operações associadas com grupos locais, como Tata, Future Group e Shoppers Stop que operam também suas próprias marcas, mas praticamente todas as marcas globais relevantes em não alimentos estão presentes no mercado indiano, tanto no luxo como nos mercados mais massificados com preços bastante competitivos em escala global.

É verdadeiramente um mercado atípico, vibrante, mesclando modernidade em alguns aspectos e primarismo e rusticidade em outros, porém único em suas características.

Quem assistiu o filme The Lunchbox conheceu um pouco da logística envolvida que faz com que mais do que 250 mil esposas em Mumbai enviem diariamente para seus maridos no trabalho “quentinhas” que são preparadas pela manhã e chegam ao seu destino, aquecidas, numa rotina que se repete de forma estruturada e organizada envolvendo o transporte e recolhimento usando bicicleta e o sistema ferroviário da cidade. O sistema conhecido como Dabbawallah foi estudado na Universidade de Harvard como case de logística pois cada uma é enviada corretamente ao destinatário e recolhida e devolvida sem que haja o nome tanto do destinatário como da remetente.

Isso faz parte dos mistérios desse país repleto de contrastes, como também ocorre no varejo, onde em áreas comuns de ligação entre dois shoppings, um de classe média e outro de alto nível, com marcas globais de luxo, como o Empórium em Delhi, seja ocupada por barracas de roupas, utilidades e produtos diversos, atendendo aos clientes que passam de um para outro shopping, com apoio, iluminação e segurança providos pelo shopping.

A segurança tornou-se uma questão obsessiva, depois de ataques terroristas que aconteceram no passado recente e que faz com que todos os carros ao acessarem os shoppings, supermercados ou lojas maiores de varejo, sejam inspecionados e os porta-malas abertos. Assim como, por outras razões, a maioria das maiores lojas nesses locais tenham, além dos detectores de etiquetas de segurança e guardas nas saídas, revendo notas emitidas e conferindo produtos.

No extremo dessa obsessão, os clientes não podem entrar nas lojas dentro dos shoppings carregando bolsas, malas ou mesmo pacotes de outras lojas e são obrigados a deixá-los em um guarda-pacotes, recebendo senhas para retirá-los depois.

Tudo isso caracteriza a idade da pedra do comércio e do varejo porém é decorrente das dificuldades em atender uma população desse tamanho que só recentemente passou a ter acesso aos novos conceitos e marcas do mercado global, ainda que discriminadas em sua atuação, limitada às lojas 100% marcas próprias e franquias, ou operadas em sociedade com um parceiro local.

Não há dúvidas que o tamanho, o potencial presente e futuro desse mercado justificam que qualquer negócio que tenha pretensão de ser de fato global, em algum momento, encare o desafio de aprender a operar na Índia. O que definitivamente não tem nada de fácil.

Clique aqui e relembre o primeiro capítulo dessa jornada!

*Marcos Gouvêa de Souza (mgsouza@gsmd.com.br) é diretor-geral da GS&MD – Gouvêa de Souza

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