O cenário do comércio eletrônico passa por mudanças significativas, com os índices de venda por canais digitais em retração. De acordo com os dados mais recentes do relatório da NIQ Ebit, publicado em agosto, o primeiro semestre deste ano sofreu queda surpreendente de 7,3% em relação ao mesmo período de 2022, o que representa uma queda de R$ 9,4 bilhões em faturamento – R$ 119 bilhões ante R$ 128,4 bilhões um ano antes.
Por outro lado, a base de clientes cresceu 6% e o comércio eletrônico demonstra participação crescente nas vendas totais do setor varejista. Paralelamente, a expectativa da ampliação do poder digital, tanto nas operações de venda quanto de consumo, sugere transformações inevitáveis e alerta o varejo para se adequar à nova era de interações.
Para entender o novo cenário, é preciso voltar a 2020. As vendas pelos canais digitais apresentaram um crescimento vertiginoso, sobretudo em volume, em quase três anos de pandemia, porque essa era a única forma de comprar. Segundo Roberto Wajnsztok, sócio-diretor da Gouvêa Consulting, apesar de ser um período de poucos investimentos, os recursos disponíveis foram inseridos no digital.
Samuel Gonsales, sócio e diretor de Relacionamento da E-commerce Brasil (ECBR), ressalta que empresas que operavam 100% offline tiveram de mudar suas práticas para atender aos seus clientes. Ficou mais simples de comprar na farmácia, adquirir ingressos para o cinema, abastecer a despensa, comparar preços e aproveitar ofertas. Além disso, o conforto e a conveniência da experiência de compra agradaram os consumidores.
Com a normalização das atividades econômicas pós-covid, era esperado um crescimento menor. Embora a queda tenha surpreendido os mais pessimistas, a análise mais criteriosa do estudo traz informações muito importantes para o setor.
Observa-se que março foi o pior mês para o e-commerce (-11,9%). De abril em diante, iniciou-se uma retomada gradual, com perspectiva de estagnação de agosto a outubro em comparação com o mesmo período do ano passado. O número de clientes que transacionam online passou de 49,8 milhões para 53 milhões e o valor gasto também cresceu, mas a quantidade de pedidos diminuiu e afetou os números do setor neste primeiro semestre.
Para Guilherme Arantes, especialista em e-commerce da Nuvemshop, juros altos e falta de clareza sobre os rumos da política fiscal impactam diretamente as decisões dos varejistas e o poder de compra dos consumidores.
Isso significa que, de um lado, os vendedores online mais descapitalizados tornaram-se menos agressivos quanto às ofertas, como fretes grátis, desconto no Pix, parcelamento sem juros e oferta de brindes, e, de outro, o comprador, com perda de poder aquisitivo, alto endividamento e sem aumento salarial, reduziu a frequência das compras e passou a gastar mais na operação realizada, especialmente em perfumaria e cosmético, única categoria a registrar crescimento substancial nas vendas, de 5,8%.
“As lojas online tiveram de equilibrar suas margens, o que pôde ser feito com o crescimento da base, evidenciando a maior penetração do e-commerce entre os consumidores”, analisa Wajnsztok. De acordo com o consultor, o fechamento de unidades físicas de grandes empresas como Tok&Stok, Marisa, Renner e Casas Bahia, para citar alguns exemplos, foi responsável por alavancar artificialmente o faturamento do e-commerce.
Wajnsztok acredita que esse jogo de forças positiva e negativa atuando no setor tende a manter as transações digitais não tão desequilibradas, pois a robustez esperada não vingou. Não ainda.
Amadurecimento
Samuel Gonsales julga que o comércio eletrônico no Brasil está em fase de amadurecimento. Seu otimismo em relação ao setor faz crer que as empresas podem ser mais criativas em períodos de retração. Afinal, não é a primeira crise do varejo, e possivelmente não será a última, mesmo que as negociações sejam feitas pela internet. Para ele, a pandemia reconfigurou os hábitos de consumo, sendo este um caminho sem volta.
A E-commerce Brasil catalogou 17 estratégias de entrega implementadas no País entre digital, física e mista. As opções de compra também continuarão a surgir, como adquirir produtos de um marketplace criado pelo banco do qual o cliente é correntista e retirá-los em uma loja física ou receber na porta de casa.
A fim de que essas expectativas se consolidem, terão os melhores resultados, segundo Gonsales, os vendedores que se estruturarem sobre três importantes pilares: conveniência (oferecer online o que o cliente precisa), comodidade (facilidade de entrega ou retirada) e informação. Quem não responder a essas demandas estará fora do jogo.
“O consumidor vai comprar de outro que ofereça ou mais informações, ou mais conveniência ou mais comodidade”, diz o especialista. Mesmo que os varejistas queiram investir menos no e-commerce, eles terão de manter alguma estratégia digital para que as pessoas possam se relacionar com seus clientes, seja pelas redes sociais, pelo WhatsApp, seja por um aplicativo específico para o seu negócio.
Os dados da Nuvemshop, empresa que oferece uma plataforma digital para pequenas e médias empresas (PMEs) venderem online, convergem para o otimismo de Gonsales. Guilherme Arantes afirma que o faturamento das PMEs cresceu 25% no primeiro semestre deste ano e movimentou R$ 1,5 bilhão no período. Em seis meses, os lojistas venderam 25 milhões de produtos, com destaque para o segmento de joias, que teve um resultado 77% melhor que o do primeiro semestre de 2022. Para a análise, a empresa utiliza os dados fornecidos por sua base composta de 110 mil lojas online cadastradas.
Anos de crescimento
“As pessoas se acostumaram a comprar pela internet e vão continuar fazendo isso. Quando algo se torna um costume, é difícil parar de fazer”, avalia Rodrigo Dantas, CEO da Proteína Digital, empresa de consultoria e soluções criativas baseadas em dados. Sua percepção é a de que, em dez anos, as compras online poderão dobrar em relação a todas as vendas feitas atualmente, mas cada produto poderá responder de forma diferente em relação à sua adaptabilidade aos canais digitais.
Samuel Gonsales prevê que os próximos anos serão de investimento maciço no setor. Os varejistas encontram à sua disposição tecnologias nacionais para aprimorar seus recursos, como soluções de live commerce. “O caminho já está pavimentado. É só uma questão de fôlego para o varejo para massificar [o comércio eletrônico], opina.
“Quando analisamos o cenário, entendemos que a compra pela internet vai continuar crescendo, mesmo que seja devagar”, observa Dantas. “E as lojas vão precisar se adaptar, oferecendo mais variedade e personalizando as ofertas para acompanhar essa mudança.”
“Com o avanço da tecnologia, a gente consegue ver que os lojistas continuam se especializando mais ainda em como usar a tecnologia de ponta, a Inteligência Artificial e o marketing digital”, assinala Guilherme Arantes. “Baseados nisso, vemos uma perspectiva de crescimento muito interessante para os próximos anos”, complementa o especialista.
Hiperconexão
O futuro é digital, com absoluta certeza. O e-commerce está se preparando para a era em que todas as coisas estarão conectadas e as relações de consumo passarão quase totalmente pelo online. Segundo Roberto Wajnsztok, a hiperconexão será o fator viabilizador da exponenciação do poder digital nos próximos anos e a movimentação das grandes empresas nesse sentido dá sinais do que esperar.
Para Gonsales, a Alexa, da Amazon, estremece mais o varejo do que os números apresentados pelo relatório da NIQ Ebit. Ao solicitar uma receita, por exemplo, o dispositivo de voz transmite a informação e sugere uma compra no final. Também pergunta se pode selecionar produtos do interesse do usuário na faixa de preço que ele se dispõe a pagar durante a semana do consumidor ou na Black Friday. A Inteligência Artificial estimula a necessidade de consumo.
Nos Estados Unidos, a Netflix lançou seu próprio e-commerce, a Netflix Shop, com produtos exclusivos, colecionáveis e limitados de produções originais do seu canal, como objetos e peças de vestuário. O negócio será expandido para outros países. Para se ter uma ideia do projeto do streaming, a série “Stranger Things”, lançada em 2016, tornou-se o carro-chefe da plataforma com bilhões de horas em visualizações. Também se tornou um fenômeno cultural, vendendo produtos de todo tipo a fãs da série, desde canecas, bonecos, jogos e mochilas até vasilhame de ketchup em uma edição especial produzida pela Heinz.
No Brasil, as TVs de concessão pública estão passando pelo período de revalidação de suas permissões. Sem capital para manter as emissoras, Gonsales acredita que grandes redes varejistas podem aproveitar essa oportunidade para obter um canal direto com os consumidores/telespectadores, a exemplo do que já fez a Amazon. Na mesma linha, o Mercado Livre também lançará o seu próprio streaming. As vendas aumentaram com a oferta de assinatura do combo Disney e Star+ pelo marketplace. Com o seu próprio catálogo de filmes e séries, o ML assegura o cliente conectado à sua plataforma.
A busca é pela relevância. Em vez de serem lembradas quando algo falta, as gigantes do varejo querem estar presentes na vida do consumidor constantemente. A estratégia é fortalecer o vínculo entre as partes, deixar mais clara a oferta de múltiplos produtos, com preços diversificados, converter a relação em compra e fidelizar o consumidor.
Outra forma de se consolidar é criar um modelo disruptivo de negócio digital. Wajnsztok exemplifica com o fenômeno recente da Shein, que até cerca de um ano atrás era uma desconhecida entre brasileiros e, agora, bate recordes de faturamento, ultrapassando redes estruturadas do segmento da moda. Na visão do consultor, o digital tem um espaço propício para a proliferação de modelos disruptivos, isto é, que reconfiguram o mercado. Por essa razão, também apresentam crescimento exponencial no online.
Waze, Uber e Instagram são três exemplos disruptivos mencionados por Wajnsztok. As pessoas não sabem precisar ao certo como essas tecnologias chegaram até elas. Não viram anúncio em nenhum canal. Assim, para o consultor da Gouvêa, “o fator exponencial no varejo e no consumo é o efeito que o digital gera dentro do mercado consumidor”.
“Por que a tecnologia é um viabilizador?”, questiona Wajnsztok. E ele mesmo responde: “Porque essa informação jamais chegaria se você não estivesse conectado.” E como as pessoas estão conectadas o tempo todo, cada usuário viabiliza um negócio disruptivo, algo em potencial que, ao chegar até ele, resulta em crescimentos jamais vistos. “Isso vai continuar acontecendo. A gente só não tem como adivinhar qual será o próximo da lista”, conclui.
Isis Brum, em colaboração para Mercado&Consumo.
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