Há uma nova corrida do ouro no varejo global: deter um canal de comunicação e de relacionamento digital relevante com os consumidores. A chave para esse canal? Programas de fidelidade que permitem não só coletar dados dos consumidores, mas também alavancam o engajamento com os consumidores.
O clichê: data is the new oil (dados são o novo petróleo)
Uma analogia que se tornou comum foi chamar os dados de novo petróleo, usando a referência de que, nos anos 2000, as maiores empresas do mundo eram do setor de óleo e gás. Empresas como Exxon, Total, Shell, PetroChina, etc. dominavam o ranking. Era um cenário completamente distinto da atual configuração em que as maiores empresas do mundo são as do segmento de tecnologia e que têm em comum, entre outros fatores, a competência de coletar, processar e extrair valor dos dados dos consumidores.
Seguindo a analogia acima, o petróleo cru seriam os dados, a plataforma de petróleo seria os programas de fidelidade, a refinaria seria a infraestrutura de dados, a distribuidora seria o time e competências de Analytics e, por fim, os postos de combustível seriam as plataformas de Business Intelligence (BI).
Dessa forma, atualmente dentro do grupo de varejistas relevantes só existem dois tipos: aqueles que já têm programas de fidelidade consolidados e aqueles que estão lançando (ou relançando) seus programas na busca de torná-los relevantes.
Corie Barry, CEO da Best Buy (que relançou seu programa há poucos anos), disse, na sua palestra da NRF 2022, que “dados são a moeda do futuro”, quando perguntada sobre o que irá definir o futuro do varejo.
Todos os caminhos levam a Roma
Há inúmeros modelos e formatos de programas de fidelidade, cada um adotando uma estratégia e proposta de valor distintos, mas no final do dia todos buscam o mesmo resultado: criar um canal de comunicação relevante com o seu cliente, em que a captura de dados serve como matéria-prima para a customização um a um da experiência.
Os primeiros programas eram pouco sofisticados e não apostavam na coleta de dados. Eram operações puramente transacionais de compre e ganhe que apelidamos de “método pizzaria”: compre 10 e ganhe 1. Muitas empresas ainda apostam nesse formato, porém adotando novas mecânicas e incluindo a captura de dados.
Outro formato é o do cashback, modelo em que um percentual das vendas é revertido para o consumidor em créditos. O formato é tão popular que a maior parte das pessoas pensa nessa mecânica quando fala-se de programa de fidelidade. Apesar da sua popularidade, esse modelo apresenta dificuldades grandes de ser implantado em indústrias com margens pequenas, caso da maioria esmagadora dos segmentos de varejo. Nos segmentos de supermercados, por exemplo, nos quais a margem líquida gira na casa dos 2% a 4%, é inviável dar cashback para os consumidores, pois consumiria de 30% a 50% da margem e geraria baixo valor agregado – nenhum consumidor ficaria feliz ao gastar R$ 1 mil no supermercado e receber R$ 10 de cashback como recompensa.
Por outro lado, o modelo de chasback está ganhando força não com o intuito de gerar fidelidade, mas sim de conquistar novos clientes. Essa é a aposta de empresas como Méliuz, Dinvo, Ame, PicPay, etc., que buscam ter uma ampla base de clientes que passa a ser oferecida para diversos varejistas. Para atrair novos consumidores, eles oferecem cashbacks generosos. Nesses casos, a conta é feita de maneira diferente: abre-se mão de um percentual grande da margem na primeira compra, mas em troca ganha-se novos clientes. Nesse caso o cashback precisa ser menor do que o CAC (custo de aquisição de clientes) médio da companhia.
Outra aposta é nos modelos de programas gratuitos que oferecem benefícios exclusivos para seus participantes. Uma das empresas referência nesse formato é a Starbucks nos Estados Unidos com seu programa Starbucks Rewards no qual o cliente tem direito a diversos mimos e upgrades exclusivos conforme seu gasto mensal/anual com a empresa. A fundação desse modelo é encontrar benefícios que gerem alto valor percebido ao consumidor, mas que tenham custo marginal pequeno para a empresa. No caso da Starbucks, um dos benefícios mais populares é o direito de ganhar upgrade no tamanho do café – os clientes compram o médio e levam o grande, por exemplo – benefício com baixíssimo custo para a empresa, mas com alto valor agregado aos consumidores. Outro aspecto interessante no programa da Starbucks é que os clientes que compram/carregam créditos dentro da plataforma para fazer as suas compras têm ainda mais benefícios. Com isso, a Starbucks custeia uma parcela relevante do programa ao ter uma taxa de desconto de cartão menor e ao girar o dinheiro do cliente enquanto ele não gasta.
Um modelo que tem ganhado força é dos programas que são usados como mídia e canal de acesso aos consumidores pelos fornecedores. O pioneiro e ainda líder nesse formato no Brasil é o GPA, que há décadas desenvolve o seu programa em parceria com a inglesa dunnhumby. Uma das principais mecânicas do programa é que os fornecedores podem usar a plataforma para oferecer descontos diretamente para grupos específicos de consumidores, sendo possível direcionar ofertas para cada cluster de segmento considerando idade, gênero, classe social, geografia, perfil de compra, consumo em outras categorias, etc.
E, por fim, não podemos deixar de falar dos programas de fidelidade pagos. A Amazon foi visionária e pioneira nesse modelo com o seu programa Prime. Nos últimos anos, passou a ser seguida por diversos varejistas como Walmart (com seu Walmart Plus), Best Buy (com o seu My Best Buy), Lululemon, entre muitas outras.
O sucesso do programa da Amazon é incontestável, principalmente no mercado norte-americano, onde a empresa concentra seus esforços, com mais de 150 milhões de usuários que pagam US$ 10 para acessar o programa apenas nos Estados Unidos. Estima-se que a penetração nos lares americanos ultrapasse o patamar de 75%. Se considerarmos a penetração por potencial de consumo ouso dizer que essa penetração ultrapasse 90% ou 95%.
Nas palavras do próprio Jeff Bezos, “o valor agregado para o consumidor do programa Prime é tão grande que é inconsequente não ser um membro”. Ao assinar o programa de fidelidade, o cliente passa a ter acesso a benefícios que, somados, têm um um valor muito superior ao valor da assinatura em si, passando a ter direito/acesso a frete expresso grátis, serviço de vídeo por streaming, serviço de música por streaming, assinatura de livros, promoções exclusivas, etc.. O cliente que é assinante passa a privilegiar e concentrar todas as suas compras dentro do ecossistema Amazon. A Amazon, por sua vez, por meio do programa, não só amarra o consumidor na sua plataforma, mas também detém dados valiosíssimos do seu comportamento de compra, perfil de consumo, hábitos e gostos (música, vídeo, leitura), etc., e agora detém um canal de altíssima relevância e engajamento com o consumidor.
O programa Prime é peça fundamental na estratégia da Amazon e um dos fatores centrais que possibilitam que a empresa detenha mais de 50% de market share do e-commerce nos Estados Unidos e para que seja a varejista mais valiosa do mundo com valor de mercado de US$ 1,6 bilhão, sendo que o segundo colocado é o Walmart com valor de US$ 420 bilhões (Abr/2022).
Visão do futuro
A realidade que está imposta é que em um futuro próximo, globalmente e também em âmbito nacional, não haverá varejistas relevantes que não possuam programas de fidelidade relevantes e que não tenham desenvolvido capacidade de análise e monetização desses dados e desse canal de comunicação. Tal ativo e essa competência serão premissas básicas para jogar o jogo do varejo. Caso contrário será como entrar em uma disputa com armas de fogo possuindo apenas uma faca.
Eduardo Yamashita é COO da Gouvêa Ecosystem.
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