Quando Jorge Paulo Lemann, um empresário-ícone e exemplo de comportamento visionário no cenário mundial, declarou publicamente que algumas de suas empresas estavam atrasadas na corrida digital, a sinceridade causou espanto. Especialmente quando no seu portfólio estão empresas como Ab-InBev, Americanas, Burger King, Heinz e muitas mais.
Ele não se referia à tecnologia ou ferramentas digitais em uso por suas organizações, mas ao modelo de negócios praticado pelas empresas, em sua maioria líderes em seus segmentos, situação alcançada com estratégia, cultura, processos e práticas calcados no pensar tradicional, na qual a eficiência e os resultados vinham de alguns dogmas cultivados com fervor, envolvendo máxima eficácia, busca permanente de escala, controle rigoroso de custos e absoluto foco no desempenho e resultados.
O que também espanta é como essa percepção se converteu em ação e como os resultados dessa reflexão, tornada pública à época, geraram mutações estratégicas importantes nas empresas, como a Ambev tem implementado.
Com vendas em 2021 de R$ 72,85 bilhões e valor de mercado atual perto de R$ 240 bilhões, na Ambev essa mutação estratégica envolveu uma profunda transformação da visão de uma empresa focada na venda de bebidas para um milhão de clientes dos setores de bares, restaurantes, mercadinhos e redes de supermercados para um Ecossistema de Negócios. A empresa expandiu categorias de produtos e serviços oferecidos para seus clientes tradicionais e também evolui para um conceito mais abrangente e ambicioso envolvendo oferta de produtos e serviços, incluindo operação franqueada de bares e botecos, em conexão direta com consumidores finais.
As iniciativas envolveram a criação de uma plataforma para venda de bebidas, alimentos e serviços, próprios e inclusão de terceiros, tendo já como usuários empresas como BRF, M. Dias Branco, Mondelez, Pernod Ricard e Beam Suntory usando as conexões criadas para a venda de bebidas. Dentre os serviços, a inclusão de crédito e até energia renovável – mas isso deverá ser bastante ampliado no futuro.
Nas categorias de produtos, a amplitude é quase ilimitada, talvez só restrita aos concorrentes mais diretos, mais por opção desses concorrentes do que por definição interna.
Esse movimento estratégico é apoiado pelas duas plataformas criadas. A Bees, direcionada para bares e restaurantes, e a Zé Delivery, para consumidores finais, além da fintech Bees Bank, que já tem 250 mil contas digitais, ampliando os serviços financeiros passíveis de serem ofertados.
No caso da Vivo, controlada pela Telefônica, o movimento envolveu o reconhecimento no valor do ativo representado por perto de 100 milhões de clientes, pessoas físicas e jurídicas, para os quais a empresa só vendia serviços de telefonia no passado recente.
A Vivo tinha uma ativo intangível de valor muito superior ao que conseguia monetizar pela venda de serviços de comunicações convivendo muitas horas por dia com seus clientes, conhecendo, cobrando e podendo monitorar comportamentos, dentro de todas as regras da LGPD.
A empresa partiu para essa mutação estratégica quando se assumiu como um Ecossistema de Negócios e, como lógico, com forte predominância do tema digital, ampliou a oferta de produtos e serviços para além daqueles envolvendo telefonia celular, fibra, aparelhos e equipamentos de comunicação. Ao seu portfólio foram incorporados serviços ligados à educação e saúde e muito poderá e deverá ser incluído adiante, tirando proveito dessa conexão direta com seus clientes e multiplicando oportunidades para geração de negócios.
Mais recentemente esse movimento envolveu a criação de um fundo de Corporate Venture Capital com investimentos estimados em R$ 320 milhões nos próximos anos em startups que possam ser agregadas em fase mais madura.
Até então a Telefônica já vinha investindo em startups por meio da Wayra, hub de inovação do grupo e com um portfólio de 30 empresas no Brasil com investimentos totais realizados de R$ 25 milhões.
Esses movimentos serão geradores de oferta de novos produtos e serviços e se retroalimentarão em termos de amplitude, profundidade e atualidade de informações potencializando negócios entre os atualmente existentes e novas iniciativas.
Outro exemplo recente de mutação estratégica é o que envolve a Porto, antiga Porto Seguro, que além da mudança da marca se assume como um Ecossistema de Negócios e amplifica sua oferta de produtos e serviços para muito além dos propostos em sua visão tradicional de serviços financeiros e de saúde. Desta forma, tira proveito da conexão, relacionamento, conhecimento e proximidade com os clientes atendidos em suas plataformas para ampliar a oferta e multiplicar negócios.
Nos últimos anos em acordo recente com a Cosan criou uma joint venture batizada de Mobitech para atuar na área de mobilidade, evolução de sua plataforma Carro Fácil de assinatura de veículos.
Também comprou 74,6% da Atar, empresa de tecnologia bancária e serviços financeiros digitais, e anteriormente havia adquirido 50% da ConectCar e lançado a Tag Porto Seguro para uso em pedágios, estacionamentos e com potencial para avançar para muitas mais frentes.
Além de ter comprado no ano passado participação da Petlove, operação online no segmento pet e desenvolvido parceria com a Samsung para oferecer o Tech Fácil, plano de assinatura anual de smartphones que permite a troca por um aparelho novos todos os anos.
Em todos os casos é a mesma lógica que rege a transformação de uma empresa ao se redefinir com Ecossistema de Negócios, tendo como epicentro de tudo seus consumidores, pessoas jurídicas ou físicas, potencializando oportunidades pelo conhecimento, monitoramento, relacionamento, promoção e conexão direta por meio da integração de informações e seu uso de forma visionária para desenvolver oportunidades.
Essas mutações são todas inspiradas pelo que ocorreu inicialmente na China e também com as plataformas exponenciais no mundo ocidental e chegaram ao Brasil pelas iniciativas de varejistas tradicionais, como Magalu, Americanas, Via, Riachuelo, Carrefour e outros, reunidos no que nominamos Ecossistemas de Negócios Made in Brazil.
Mais recentemente outras organizações reveem a forma como usam seu ativo intangível do conhecimento, informação e conexão direta com consumidores e clientes e como se transformam cultural, estrutural e organizacionalmente para incorporarem o modelo de Ecossistemas de Negócios em toda sua dimensão.
Eis um tema que merece um profundo repensar estratégico que pode ser decisivo na redefinição dos negócios para o futuro.
Vale muito considerar.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
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