Quem esteve em Austin na semana passada, como eu, saiu do importantíssimo festival de inovação SXSW (South by Southwest) com uma convicção: estamos vivendo um momento histórico. Pode parecer exagero, mas garanto que é isso mesmo o que está acontecendo. Nada será como antes.
Assim como a revolução industrial mecanizou uma série de tarefas que fazíamos manualmente, a democratização do acesso a sistemas de inteligência artificial (IA) generativa, como ChatGPT e Midjourney, vai automatizar rapidamente atividades que realizamos mecanicamente, como dirigir um carro, identificar um rosto conhecido, redigir uma prova de matemática, escrever um artigo ou desenvolver um plano de marketing. Duvida? A maior parte dessas coisas o ChatGPT já faz. Sobre os carros autônomos, que foram tema de várias sessões no SXSW, a GM já conta com 150 desses veículos transportando destemidos passageiros, em São Francisco. O futuro é hoje à noite.
Tem mais. Como explicou a futurista Amy Webb em uma das melhores palestras do Southby, a própria internet como a conhecemos não existe mais. Não entendeu? Eu explico.
A Web1 consistia em fazer pesquisas nas páginas da world wide web, como quem folheia uma enciclopédia virtual. Na Web2 adquirimos o direito de também fazer postagens, o que originou a febre das redes sociais. A lógica da Web3, no entanto, representa uma enorme evolução em comparação com os primórdios da vida digital. Ela passa por interações e troca de informações contínuas entre pessoas, entre computadores e, claro, entre máquinas e humanos. Como se pode perceber, a internet já não é mais a mesma.
Para Mike Bechtel, Chief Futurist da Deloitte, em pouco tempo não serão necessários nem mais equipamentos para estabelecer essa comunicação. Quando quisermos saber qual a previsão do tempo, não pesquisaremos no computador ou celular. Nem perguntaremos à Alexa, Siri ou Google. Simplesmente falaremos alto (ou só pensaremos, em um futuro um pouco mais distante) e a resposta virá. Bechtel chama isso de “ambient experience” (experiência ambiente). A interface será totalmente conversacional e os sistemas de IA anteciparão nossas necessidades, como faz o Jarvis, assistente virtual do Tony Stark, alter ego do Homem de Ferro, nos filmes da Marvel.
Resumo da ópera: estaremos em definitivo no estado “always on“, sempre conectados. Sem esforço, seremos lembrados da aproximação do aniversário da filha ou do jantar na casa dos amigos. Automaticamente receberemos sugestões de presentes ou dica de um vinho de que os amigos gostam e faremos a compra na hora. Os assistentes digitais nos acompanharão permanentemente e será natural consumir dessa maneira. Quem viver, verá.
A pergunta que não quer calar é: como ficam as lojas e os centros comerciais nessa nova realidade?
Resta pouca dúvida de que a integração radical do digital em nossas vidas tornará obrigatória a reinvenção dos espaços físicos. Shoppings, parques, lojas e restaurantes, podem continuar sendo relevantes na vida das pessoas. No entanto, para isso, precisarão se reinventar.
A chave para essa reinvenção passa por uma das palavras mais repetidas nas sessões do SXSW 2023: comunidade. Pessoas continuarão querendo e precisando conviver presencialmente. Para esses encontros, elas escolherão lugares que refletem seus valores, onde se sentem bem e podem encontrar ou conhecer outras pessoas que compartilham dos mesmos gostos. Um dos maiores desafios das marcas em geral, e do varejo e shoppings em particular, será desenvolver espaços onde as pessoas queiram estar.
A função desses espaços não será necessariamente vender produtos ou serviços e sim hospedar comunidades, abrigar encontros e proporcionar descobertas. O modelo de negócio estará, mais do que nunca, atrelado à produção de sinais e dados dos seus frequentadores. Aliás, dados não serão apenas o novo petróleo. Serão a própria moeda.
O SXSW tratou de mostrar que há espaço na vida das pessoas para lugares incríveis. Em uma das sessões mais concorridas da edição deste ano, Josh D’Amaro, chairman da divisão de Parques, Experiências e Produtos da Disney, literalmente deu show no palco do Austin Convention Center. Ele distribuiu sabres de luz, contracenou com uma Tinker Bell holográfica e convidou Hulk para passear pela plateia. Ao mesmo tempo, D’Amaro revelou que Walt Disney projetou a Disneylândia como um lugar de sonho e felicidade e que os restaurantes e lojas complementam a experiência dos convidados.
É bem por aí. Ninguém vai aos parques Disney para fazer compras ou comer. As pessoas vão pela magia e pelo prazer. Mas é bem difícil sair de lá sem gastar em produtos ou alimentos.
Outra boa dica para quem trabalha com centros comerciais foi oferecida no SXSW pela agência Amplify. Ela desenvolveu o conceito de “worldbuilding” (construção de mundos), como parte do processo de branding. A fórmula parece simples: “escolha uma marca ou produto, coloque a ‘audiência’ no centro e construa um mundo ao redor disso”, ensinaram Jeavon Smith e Alex Wilson, criativos da Amplify. Na verdade, é bem complicado – e fascinante.
Durante a palestra no Southby, a Amplify mostrou, por meio de diversos exemplos, que você pode criar um mundo e gerar produtos a partir dele, como é o caso da loja do Harry Potter. Mas pode ser igualmente poderoso pegar um produto e construir um mundo ao seu redor, como fez a Lego. É interessante notar que esses mundos podem ter versões físicas e virtuais, no metaverso, por exemplo.
Minha conclusão, ao voltar para casa depois de uma semana no Texas, é que aos poucos vai ficando mais claro o tamanho do desafio do shopping center em sua jornada rumo ao futuro. Ele vai muito além da diversificação do tenant mix, da eficácia da atuação nas redes sociais ou da humanização do mall. Será necessário investir pesado na criação do conceito de lugar, tanto físico quanto virtual, na monetização do fluxo, na captura de dados da audiência e na geração de valor para parceiros, sejam lojistas, sejam anunciantes.
Também vai se consolidando a ideia de que novos jogadores, em diferentes territórios, competirão pela atenção e tempo dos mesmos consumidores, tornando a disputa mais acirrada. Se é verdade que os shoppings, que já contam com uma boa seleção de lojas, investirão mais em ambientes agradáveis e em diversão, por outro lado espaços vocacionados ao entretenimento, como parques e áreas de lazer, estão atraindo varejistas e operações de alimentação. A parada será dura.
Fato é que estamos diante de um cenário de irreversível evolução. Diante de nós há mais perguntas do que respostas. O que fazer? Qual atitude adotar? Parafraseando Guimarães Rosa, o que esse admirável mundo novo exige da gente é coragem.
PS: esse artigo não foi escrito com ajuda de nenhum sistema de inteligência artificial 😉
Luiz Alberto Marinho é sócio-diretor da Gouvêa Malls.
Imagem: Divulgação