Todo o modelo de associação e representação setorial no Brasil, e na maioria dos mercados globais, está sempre muito centrado na visão de um setor ou segmento específico. Sem olhar de forma abrangente a cadeia de valor.
O resultado prático disso é que são olhados os interesses e necessidades de apenas um elo numa engrenagem sempre mais complexa e extensa.
A recente questão envolvendo o presidente da Fiesp estabelecendo uma relação comercial-empresarial do grupo Coteminas, por ele comandado, com a Shein e conquistando ainda o apoio do governo é um bom exemplo de como a visão das partes pode conflitar com a visão do todo e do que é melhor para o país.
Especialmente quando se trata do setor de consumo, no Brasil, esse processo é muito claro.
Abia cuida dos interesses da indústria de alimentação. Abras cuida dos interesses dos supermercados. ANR e Abrasel dos interesses dos bares e restaurantes.
IDV atua em defesa dos interesses dos diversos segmentos, formatos, canais e categorias do varejo. Eletros cuida dos interesses da indústria de eletroeletrônicos. A indústria farmacêutica tem sua mais importante representação no seu sindicato patronal.
A indústria de vestuário tem seus pleitos e interesses defendidos pela Abit. E os fabricantes de calçados pela Abicalçados. Anamaco representa os varejistas do setor de material de construção, enquanto os fabricantes desse setor tem sua representação feita pela Abramat.
E por aí segue.
São modelos herdados da organização sindical do tempo do presidente Getúlio Vargas, separando empregados e empregadores dentro da lógica do divide para governar do filósofo italiano Niccolò Machiavelli.
E que o mundo moderno redesenhado, impactado, conectado e integrado pela tecnologia e pelo digital coloca em cheque pela exponenciação da interconexão entre setores, segmentos, distribuição, produção e serviços em todos as áreas.
Um único, eloquente e visionário modelo de organização de representação de cadeia de valor ocorre no setor de foodservice, por meio do Instituto Foodservice Brasil, que reúne todos os elos da cadeia desse setor, incluindo os fabricantes de alimentos, bebidas, equipamentos, como Nestlé, Unilever, Ambev, Seara, Marfrig e mais os distribuidores logísticos, como Martin Brower e mais os principais operadores como McDonald’s, Burger King, Bob’s e muitos mais.
São perto de 80 associados que representam no seu todo R$ 108 bilhões de faturamento, 173 mil estabelecimentos e interagem com 184 milhões de consumidores todos os meses.
Um dos mais importantes diferenciais desse modelo é o compartilhamento das mesmas informações sobre comportamento de mercado, desempenho e visão do futuro sem que absolutamente nada interfira na concorrência das mais acirradas na conquista da preferência e fidelidade dos consumidores finais. É conhecida a guerra de preços e promoções que impera entre os principais operadores.
Na realidade dos negócios de forma mais ampla, os que pensam de forma integrada se destacam na mesmice dos modelos tradicionais.
Vide os exemplos globais de Apple, Zara, H&M, Nespresso, Primark e muitos mais que criaram e operam modelos integrados, gerando enorme diferencial competitivo em relação aos modelos convencionais.
Se quisermos destacar exemplos locais devemos citar Boticário, Natura, Cacau Show, Track&Field e outros, em que a integração de toda a cadeia de valor com a ótica de conhecer e entregar mais ao consumidor cria uma vantagem estratégica e competitiva que os modelos mais tradicionais não conseguem oferecer.
E que tem feito com que mais marcas e empresas ligadas à produção avancem para criar canais diretos com os consumidores, como é o caso de Unilever, P&G, JBS-Swift e a própria Coteminas com a operação de suas redes de lojas MMartan e Casa Moysés, nos setores de cama, mesa e banho.
Talvez seja o momento de repensar esses modelos e conceitos todos, especialmente quando se trata das entidades e associações empresariais, na sua maioria organizadas a partir do modelo sindical do passado. A tecnologia, o digital e a Inteligência Artificial exigem uma outra visão.
Talvez possa servir de inspiração, uma vez mais, o Keidanren no Japão, criado no final da 2ª Guerra Mundial e que se tornou um fórum que reúne todo o setor empresarial na defesa dos interesses dos diversos segmentos, atuando junto ao governo com uma visão estratégica e de longo prazo para a nação, maior do que a visão limitada de Estado no curto prazo.
Especialmente importante neste momento do Brasil.
Vale refletir.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
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