Varejo EUA: nem tudo que reluz é ouro

Momentum nº 949

Varejo EUA: nem tudo que reluz é ouro

Os dados divulgados na semana passada do Bureau de Censo dos Estados Unidos mostram que as vendas do varejo durante o ano de 2021 em relação ao anterior tiveram crescimento nominal 16,9%. Se agregado com as vendas do foodservice, o crescimento foi de 19,3%.

Se considerarmos apenas as vendas do varejo e a inflação anual de 7% em 2021, a maior inflação dos últimos 39 anos, o crescimento real das vendas do varejo teria sido de 9,25%. Ou seja, excepcional, ainda que esses números possam sofrer pequenos ajustes no seu cálculo definitivo.

A vida fica mais fácil quando temos um mercado em franco crescimento real e processo de retomada verdadeiramente em “V”, como ocorre nos Estados Unidos neste momento.

Só que não.

Diante dos desafios impostos pela inflação elevada – o maior índice desde 1982 -, somados às dificuldades geradas pelo desabastecimento e a falta de funcionários no varejo e no setor de hospitalidade (hotéis, bares, foodservice e restaurantes), fica a clara percepção que nem tudo que reluz é ouro.

Os desafios são muito diversos e o desempenho setorial e de canais, muito distinto.

Durante a reconfigurada NRF deste ano que ocorreu em Nova York na semana passada, marcada por cancelamento de expositores e palestrantes, restrições de acesso e deslocamentos, lojas com faltas de funcionários e, também, de produtos, bem ao melhor estilo norte-americano, a retomada era celebrada para criar o clima de confiança no futuro próximo.

Mas os desafios não podem ser minimizados.

Só em dezembro as vendas das lojas caíram 1,9% em relação a novembro por conta do surto da Ômicron, que afastou clientes e favoreceu ainda mais o e-commerce. Pelos dados do Mastercard Spending Pulse, a participação das vendas pelo e-commerce nas vendas do período das festas de 2021 representou 20,9 % do total das vendas do varejo.

Mas existem outros desafios que são gerados pela mudança, também lá, na geografia do consumo, com muitos pontos premium de Nova York, por exemplo, vazios em endereços como 5ª Avenida, Madison e Lexington, no Soho ou no East Side, ou mesmo nos shoppings mais descolados da cidade das mais internacionais do mundo.

Ainda vale a graça de considerarmos a maior rede de lojas no mercado norte-americano no momento a “Retail Space Available” – que, nos últimos três anos, só aumentou em número de pontos.

Enquanto isso, os formatos e operações de valor, como os clubes de compra, como Costco, Sam’s Club, os hard discounters, como Aldi e Traders’Joe, e as lojas focadas em preço, como Target, Walmart ou Best Buy, avançam ganhando participação e deprimindo a rentabilidade bruta geral do mercado por praticarem preços mais baixos e serem percebidas como mais interessantes num ambiente de inflação muito alta.

Sem falar no avanço de participação das vendas do canal e-commerce com seu impacto na rentabilidade ponderada do mercado como um todo, pelo efeito de comparação direta de preços que deprime a margem do varejo de forma geral.

Na raiz dessa situação, estão a mudança estrutural pelo crescimento das vendas pela internet, que inviabilizou muitas lojas menos produtivas, e a incorporação do home office como parte do novo normal, que reduziu de forma marcante a população flutuante de cidades pela inibição do turismo internacional e os deslocamentos dos que moram fora e trabalham nos centros corporativos e comerciais tradicionais.

Ainda que no futuro próximo o turismo internacional tenda a retomar, a questão do home office com menos deslocamentos e mais ênfase no foodservice, genérico para refeições preparadas fora do lar, e mais o vestuário e a moda, com mais ênfase no despojamento, devem impactar categorias, canais e formatos de lojas de forma desigual.

Outro elemento fundamental no cenário presente é a inflação de custos global que também impacta dramaticamente o mercado norte-americano, a começar pelos custos de frete e transporte que desorganiza os preços.

Associado a isso a falta de produtos que não chegam ou não conseguem ser repostos abrindo visíveis “buracos” nas lojas.

Da mesma forma como a transformação estrutural do emprego, que afastou funcionários especialmente dos segmentos menos recompensados, conjugada com políticas mais restritivas na imigração num ambiente com apenas 3,9% de desemprego, traz para o varejo e o foodservice sérios desafios para manter funcionários. Hoje o “novo normal” são todas as lojas e restaurantes terem placas de recrutamento na entrada.

E isso aumenta custos de pessoal, o mais alto item de custos operacionais das redes de varejo.

Sem falar nos problemas gerados pelos furtos e roubos em lojas, os “smash and grab”, ou em tradução livre, assaltos-relâmpago, que cresceram nos últimos tempos e obrigam muitas lojas, especialmente as drugstores, a manterem de 40% a 50% de seus produtos de maior valor fechados a chave.

Deve ser complicado viver num ambiente assim.

Os discursos eufóricos, e com razão, com respeito ao crescimento do faturamento não podem inibir uma visão mais crítica e aprofundada dos desafios estruturais e conjunturais que o varejo e consumo enfrentam por lá pela desigualdade da retomada precipitada pela pandemia.

Tudo isso para ficarmos apenas nos temas mais diretamente ligados ao varejo, ignorando neste momento todos os outros desafios no plano da política interna, um ano apenas após a posse do presidente democrata e mais a política externa, com a reconfigurada situação envolvendo China, Rússia e o momento desafiante com a crise da Ucrânia.

Nota: No dia 1º de fevereiro acontecerá o Interactive Retail Trends – Pós-NRF com uma análise completa do que foi visto, analisado e discutido durante a NRF 2022 e seus impactos no mercado brasileiro (clique aqui para mais informações).

Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
Imagem: Shutterstock

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