“Na semana passada, a rede de origem espanhola Dia anunciou fechamento de 343 lojas, 3 Centros de Distribuição e o pedido de recuperação judicial em São Paulo, sede de suas operações no Brasil.
Em algumas análises, essa foi mais uma constatação das dificuldades enfrentadas pelo setor de varejo no País, em especial no de alimentação. Mas uma análise mais estratégica mostra que o ocorrido é resultado de uma conjugação de fatores envolvendo aspectos estruturais de mercado e a tentativa de posicionar um formato, um modelo de negócio e de gestão que, em tese, faria muito sentido, mas que desde o primeiro momento não se ajustou à realidade local.”
O conceito Dia, desenvolvido pelo Carrefour na Espanha e lançado em 1979, se separou do conglomerado em um management buyout em 2000. Era uma proposta focada no varejo de valor, que buscava espaço para enfrentar redes como Mercadona, com desempenho muito positivo por lá.
Se posicionou como soft discount, uma proposta híbrida entre operações convencionais de supermercados de proximidade e o hard discount, que crescia e continua crescendo fortemente na Europa, Estados Unidos e outras regiões.
Em 2011, o Dia tornou-se empresa pública na Bolsa de Madrid, recebendo investimentos que aceleraram sua expansão local e global.
Em 2019, o grupo LetterOne, um fundo inglês de investimentos controlado pelo russo Mikhail Fridman, assumiu o controle do grupo Dia.
A origem desses investimentos envolve o grupo Alpha, que, sob controle de Mikhail Fridman, tem participação relevante no conglomerado de redes de supermercados X5, um dos maiores operadores desse setor na Rússia. com supermercados, hipermercados, conveniência, lojas corporativas e franquias.
Nos anos recentes, o grupo Dia fechou operações em diversos países, como França, em 2014, e China, em 2015.
No momento, mantém na Espanha seu maior negócio, com cerca de 2.800 lojas. É um dos maiores grupos supermercadistas do país e com seu melhor desempenho. O Dia também está presente na Argentina, que chegou a ter 900 lojas, e no Brasil, onde atingiu cerca de 1.000 lojas, entre corporativas e franqueadas.
Em Portugal, o Dia havia investido e comprado a rede Mini Preço, que hoje tem perto de 460 lojas, sendo 300 franquias, com cerca de 600 milhões de euros de faturamento e 5% de resultado líquido negativo.
No final do ano passado, a rede Mini Preço foi comprada pelo Auchan, que também adquiriu outras 200 lojas na Espanha do próprio Dia.
Tendo um controlador de origem russa, os conflitos políticos envolvendo a Rússia nos anos recentes criaram um quadro de restrição de investimentos para o LetterOne, que afetou os planos no Brasil, precipitando as mudanças mais radicais que foram recém implantadas.
Como foi anunciado, o Dia manterá as 244 lojas no Brasil nos dois modelos de negócios – corporativo e franquia – e um Centro de Distribuição no Estado de São Paulo, o mais competitivo e de maior potencial de consumo no mercado brasileiro.
Apesar do amplo e abrangente conhecimento de varejo de alimentos no mundo, o formato e a proposta de valor do Dia sempre enfrentaram dificuldades para se posicionar no Brasil e tiveram problemas para atingir escala e se diferenciar com sua estratégia de predominância das marcas próprias, elemento fundamental do modelo de negócio proposto.
Lembrando que, no setor de supermercados, as marcas próprias no Brasil representam apenas em torno de 7% das vendas totais, o que é bem diferente da realidade na Europa e nos Estados Unidos.
Também tiveram pela frente o aumento da concorrência representada pelo desenvolvimento de formatos voltados para a proximidade, tanto do Pão de Açúcar quanto do Carrefour e, mais recentemente, de outras redes, com a chegada da Oxxo, de origem mexicana, com perto de 20 mil lojas na América Latina e no Brasil, em sociedade com Raízen com seu ambicioso programa de expansão.
Assim como enfrentaram a concorrência direta dos atacarejos, o atacado de autosserviço, conceito que se tornou o mais importante e com maior crescimento no segmento de alimentos nesses últimos anos. Lembrando ainda do movimento estratégico de crescimento do canal digital e da venda direta de fornecedores, também nessas categorias.
Outra concorrência importante enfrentada pelo conceito é o da informalidade, uma vez que a estratégia de lojas menores e as de proximidade também é mais vulnerável a esse elemento.
O conjunto desses problemas, agravado pela restrição de novos investimentos no mercado brasileiro, fez com que a rede tivesse dificuldades com sua proposta e a execução, o que acabou significando a troca de 4 CEOs em 5 anos.
Se já é complexo operar nesse setor num país como o Brasil, com todos seus desafios e particularidades fiscais, tributárias, trabalhistas e logísticas, que afastaram o Walmart, o maior operador global de varejo, com as outras questões envolvendo o modelo de negócio, formato, escala, posicionamento, localização, continuidade da gestão, o desafio de implantar franquias e marcas próprias foi agravado ainda mais pelas limitações do investimento direto externo da controladora.
É inegável que o potencial do mercado de consumo e varejo do Brasil é dos mais altos do mundo, tem ainda espaço para um significativo crescimento, está se tornando mais maduro, competitivo, digital e concentrado e será cada vez mais desafiador.
Mas não se deve confundir dificuldades pontuais de alguns operadores com aspectos sistêmicos e estruturais que envolvem os setores com um todo. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Eis a questão a ser pensada no dia a dia e, principalmente, em termos estratégicos.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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