É muito mais do que uma questão de ponto de vista. Ou de enxergar o copo meio cheio ou meio vazio. Tem muito a ver com abrir a visão e tentar enxergar a realidade de forma realista e ampla. A realidade que se apresenta superada a fase mais aguda da pandemia – na Inglaterra liberou geral – é um admirável mundo novo, mas pode ser também entendida como um indesejável mundo novo.
Não faltarão fatos e argumentos para embasar essa ampliada e polarizada visão tanto no plano interno do país quanto em escala mais global.
Do lado indesejável da percepção, podemos somar a ampliação das desigualdades, a menor sensibilidade com o sofrimento alheio, as mortes e sequelas geradas pela Covid-19, a maior concentração de poder econômico, a sensação coletiva de fragilidade ante o imponderável, a potencialização da volatilidade e a maior limitação do planejamento de mais longo prazo.
No extremo, o conjunto desses fatores criou uma indesejável realidade – sem apego ao passado – à qual muitos tentam se adaptar e da qual outros tentam até mesmo fugir, buscando refúgio físico e mental mais isolados, porém mais ou menos ligados digitalmente, como elemento de compensação ou conexão fora de sua bolha.
Mas talvez o sentimento mais presente e, no nosso entender, mais realista, é aquele que olha o processo transformacional de maneira virtuosa. O lado meio cheio do copo. E reconhece a enorme evolução positiva num prazo muito curto em muitos setores, atividades, negócios e na própria sociedade.
Nesse campo, deve ser destacada a velocidade com que o mundo enfrentou a pandemia e criou vacinas e alternativas.
A forma como a maioria dos governos, com os inevitáveis erros e acertos, soube administrar causas e consequências da pandemia e encontrar caminhos para enfrentar o problema. É inegável que houve profunda diferença na maneira como o assunto foi encarado e as ações implementadas, no mais das vezes por conta de questões ideológicas e políticas que determinaram comportamentos.
É marcante como o mercado, as empresas e os negócios se adaptaram e, em muitos casos, se anteciparam, criando alternativas que trouxeram como resultado um salto temporal em tendências que se manifestavam anteriormente.
Nesse capítulo, é significativo o avanço acelerado das vendas pelo comércio eletrônico como alternativa às limitações de deslocamento e contato social. Em muitos mercados, como no Brasil, a participação dessa modalidade mais do que dobrou no período, exigindo o desenvolvimento de novas estruturas logísticas, de tecnologia, de comunicação e relacionamento.
Da mesma forma que toda transformação, essa fez acelerar a incorporação de alternativas digitais aos meios de pagamentos e o que aconteceu no Brasil, com a velocidade de adesão ao Pix, é um ótimo exemplo.
É inegável que o mundo viveu no período recente marcado pela pandemia uma profunda transformação digital, resposta natural a problemas e circunstâncias impostas pela realidade incontrolável.
Para alguns, o mundo que emerge é mais desigual, recluso, menos solidário e atraente. Para muitos, os adeptos da visão do copo meio cheio, é um mundo ainda mais dinâmico, solidário, consciente e resiliente aos desafios impostos pelo imponderável.
No Brasil, é fato que saímos do período mais crítico ainda mais divididos, igualmente mais desiguais. Aprofundou-se e alargou-se o fosso que nos separa das economias mais desenvolvidas. Perdemos protagonismo no cenário global pela redução de nossa importância econômica, social e política e as maiores sequelas estão no plano político institucional pelas perspectivas até o momento da polarização proposta e de um indesejável mais do mesmo, não importa qual seja.
Mas é verdade que nunca se discutiu, debateu e analisou tanto nossas virtudes e defeitos. Nunca houve tanta troca de informação, opinião e expressão de preferências como no período recente pela combinação do acesso multidirecional das comunicações e o tempo e as condições para manifestações.
Esse momento mescla uma combinação de sentimentos distintos. Um certo alívio pela superação dos momentos mais críticos da pandemia com a agonia de um país à deriva na política e na sua visão de longo prazo.
Não se podem negar os marcantes avanços em muitas e relevantes frentes, de setores econômicos à pujança da maturidade digital. Mas fica um gosto amargo de que tudo isso não compensa os descaminhos e a falta de perspectivas em muitos outros aspectos.
A questão-chave é como mudar a consciência reconfigurada em ações necessárias para converter tudo isso em decisões que transformem de forma positiva a realidade.
Esse é o desafio do país que emerge da pandemia.
A sociedade tem consciência das perdas significativas do período, medidas em mortes, desemprego, sequelas e retrocessos. Mas ainda não consegue articular caminhos para além da contestação para criação de alternativas.
O tempo é o senhor da razão, como já pregava o provérbio português, apropriado de forma inoportuna pelo ex-presidente Collor em 1992.
Esse provérbio é profundamente verdadeiro em sua proposta de admitir que se deva dar tempo ao tempo para que se estabeleça o direcionamento adequado da realidade. Desde que, e somente se, os que têm a responsabilidade e o privilégio da visão mais ampla da realidade local e global se mobilizem para construir caminhos e alternativas.
O mundo novo pós-pandemia pode ser admirável, como de fato é por muitos aspectos, ou indesejável, se deixarmos as coisas simplesmente ao sabor do destino. É uma questão de opção.
Nota: Durante o Latam Retail Show virtual, de 14 a 16 de setembro, ocorrerá ampla discussão sobre as transformações que a realidade vivencia pós-pandemia e seus impactos nos negócios, no mercado, no consumo e no varejo potencializadas pelas mudanças que ocorrem no cenário mais amplo que envolve a emergente Sociedade 5.0, macro tema do evento deste ano.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.