Por que o varejo brasileiro não adota a estratégia do “terceiro lugar”?

Cada vez mais presente nos Estados Unidos, o terceiro lugar é a estratégia de negócios offline mais adotada pelas marcas do mundo

Se existe um conceito que tem se destacado no varejo global, mas que ainda engatinha no Brasil, é o do “terceiro lugar”. Popularizado pelo sociólogo Ray Oldenburg, esse termo define espaços que não são nem a casa (o “primeiro lugar”) nem o trabalho (o “segundo lugar”), mas ambientes sociais onde as pessoas podem interagir, relaxar e se conectar com a comunidade.

De todos os conceitos de marketing que importamos dos Estados Unidos, o conceito de comunidade (que é pano de fundo do conceito do “terceiro lugar”) parece ser o que menos se encaixa naturalmente na cultura brasileira.

Diferentemente dos americanos, que têm uma sociedade altamente segmentada e individualista, o brasileiro possui uma conexão emocional intensa com as pessoas ao seu redor, seja na vizinhança, no trabalho ou até com desconhecidos no transporte público.

O senso de coletividade que as marcas de varejo americanas tentam construir em torno do “terceiro lugar” é, na verdade, um mecanismo de defesa das sociedades frias e hierarquizadas, como é o caso dos EUA (e de boa parte da Europa). Lá, a ideia de um espaço de pertencimento precisa ser estimulada, pois a estrutura social baseada em raça, orientação sexual, classe social e nacionalidade é prevalente e afasta naturalmente os indivíduos. No Brasil, no entanto, o termo comunidade tem um significado diferente: carrega o peso da periferia, do subúrbio e das classes menos favorecidas.

No contexto do “terceiro lugar”, porém, essa noção de comunidade assume uma definição mais específica e se forma em torno de interesses compartilhados e da experiência vivida em conjunto dentro de um espaço que reforça esse vínculo. Ou seja, não se trata de forçar uma conexão emocional entre clientes, mas sim de criar pontos de encontro onde públicos com os mesmos gostos e estilos de vida possam interagir de maneira natural e relevante.

Cafés, livrarias e praças sempre foram exemplos clássicos do “terceiro lugar” (um dos maiores exemplos no Brasil foi a já extinta Livraria Cultura do Conjunto Nacional). Nos últimos anos, porém, o varejo em geral passou a incorporar esse conceito em diversos segmentos, criando experiências mais ricas e fortalecendo a lealdade dos clientes.

Marcas de luxo na Ásia, especialmente na China e na Tailândia (Bangkok virou a meca das compras das marcas de luxo), são os grandes exemplos do “terceiro lugar” no varejo, com chefs estrelados pelo Michelin instalados dentro das lojas de marcas como Louis Vuitton e Chanel.

Os exemplos são muitos

Nos Estados Unidos, marcas como Starbucks e Apple já entenderam que oferecer um espaço de convivência faz toda a diferença. O Starbucks Reserve não é apenas um local para comprar café, mas um ambiente para estar, trabalhar e socializar. A Apple, com seus eventos Today at Apple, transformou suas lojas em centros de aprendizado e interação.

Além dessas gigantes, marcas menores também têm explorado o conceito de forma inovadora. A Bandit Running, marca de roupas e acessórios para corredores em Nova York, criou uma loja que funciona como um hub para a comunidade de corrida. Além de vender produtos, o espaço organiza treinos coletivos, encontros e até eventos sociais, tornando-se um ponto de encontro essencial para os entusiastas do esporte.

Um dos exemplos mais bem-sucedidos da construção de um “terceiro lugar” no varejo é o da marca feminina esportiva canadense Lululemon, cuja ascensão estrondosa nos Estados Unidos foi impulsionada justamente por esse diferencial.

Antes mesmo da pandemia, a marca já havia se consolidado como referência para um público específico: mulheres ativas, que conciliam agendas movimentadas e valorizam o conforto sem abrir mão do estilo. Foi com essa proposta que a Lululemon popularizou o conceito de athleisure, unindo roupas esportivas e casuais em uma estética que se tornou essencial para o dia a dia.

Mas o grande diferencial da marca sempre foi o senso de comunidade que criou em suas lojas. Aberta desde as 7h da manhã, muito antes do horário comercial tradicional, a Lululemon transforma seus espaços em verdadeiros hubs de convivência: as mulheres podem se reunir, praticar yoga (o esporte que está no DNA da marca) e trocar experiências.

Além das atividades físicas, a interação entre os clientes é incentivada de forma inteligente, com murais colaborativos que servem como uma espécie de “quadro de recomendações do bairro”. Ali, elas encontram dicas de confeitarias, serviços de babá, limpeza e até massagistas recomendados por outras clientes. Essa abordagem faz com que as lojas deixem de ser apenas pontos de venda e se tornem pontos de encontro, fortalecendo laços e criando uma relação emocional profunda com a marca.

Outro exemplo interessante vem do setor de bicicletas. A Rapha, marca britânica com forte presença nos Estados Unidos, elevou o conceito de “terceiro lugar” em suas lojas-cafés chamadas Rapha Clubhouses. Esses espaços vão muito além da venda de produtos: servem como ponto de encontro para ciclistas, oferecem café de alta qualidade e organizam pedaladas em grupo. Quem frequenta esses locais não está apenas comprando uma camisa de ciclismo ou um acessório, mas participando de uma comunidade e fortalecendo seu vínculo com a marca.

E no Brasil? Aqui ainda são poucos os exemplos de varejistas que apostam no terceiro lugar como uma estratégia clara de diferenciação. Algumas marcas começam a flertar com o conceito, mas de maneira menos estruturada.

A Reserva, por exemplo, oferece uma experiência de compra mais descontraída, com um ambiente que incentiva a permanência, mas ainda sem o nível de imersão de suas contrapartes americanas. Outro caso interessante é o da Livraria da Vila, que sempre apostou na ideia de um espaço onde o cliente pode folhear livros, tomar um café e simplesmente passar o tempo sem pressão para comprar algo.

O que falta para o varejo brasileiro adotar de vez essa ideia?

O sucesso de cafeterias como o Octavio Café e de espaços híbridos como o Casa Higienópolis, em São Paulo, mostra que há demanda para esse tipo de experiência. Se lojas de moda, tecnologia e até supermercados começassem a pensar no “terceiro lugar” como uma ferramenta estratégica, poderiam não apenas aumentar o tempo de permanência dos clientes, mas também fortalecer sua relevância e diferenciação em um mercado cada vez mais digitalizado.

Vemos com frequência a adoção dessa estratégia no varejo mais sofisticado voltado para a classe A, especialmente nas lojas dos shoppings da rede Iguatemi, Allos e Multiplan. No entanto, isso não acontece por falta de vontade ou criatividade, mas por um conjunto de desafios estruturais, econômicos e culturais que dificultam sua adoção no mercado brasileiro.

Primeiro, há uma diferença fundamental na cultura de consumo. Nos Estados Unidos, o cliente já está acostumado a buscar experiências dentro do varejo. Já no Brasil, a lógica predominante ainda é a da busca pelo menor preço e pelas promoções. O foco em custo-benefício de curto prazo torna mais difícil justificar investimentos em ambientes imersivos que aumentam o tempo de permanência, mas nem sempre geram conversões imediatas.

Além disso, o cenário econômico brasileiro impõe barreiras significativas. Juros altos, inflação e um modelo de consumo fortemente baseado na venda parcelada reduzem a margem para inovação. Enquanto no varejo americano os investimentos em experiência são financiados por capital robusto e um modelo de pagamento mais direto; no Brasil, as empresas precisam equilibrar custos operacionais elevados com uma demanda por preços acessíveis, deixando pouco espaço para iniciativas mais ousadas.

Outro ponto crítico é a infraestrutura e a dinâmica de mercado. O varejo americano é extremamente competitivo, o que obriga marcas a se diferenciarem com inovação e serviços agregados. No Brasil, a concentração do mercado em grandes grupos e a dificuldade de novos players ganharem espaço fazem com que as empresas estabelecidas sigam priorizando eficiência e volume de vendas, em vez de transformar suas lojas em hubs de convivência.

Além disso, fatores como a desconfiança no mercado digital e o alto índice de fraudes acabam desestimulando estratégias omnichannel mais sofisticadas, que são fundamentais para a criação de experiências imersivas.

É lamentável que ainda estejamos em uma fase anterior ao que o varejo americano já consolidou. Enquanto lá o conceito de “terceiro lugar” é uma estratégia real de diferenciação e fidelização, aqui ele ainda é visto como um luxo ou uma aposta de alto risco.

Mas isso não significa que essa transformação não possa acontecer. Algumas marcas brasileiras já começam a explorar esse território, e à medida que o consumidor for amadurecendo e buscando mais do que apenas preço, o varejo nacional terá que encontrar maneiras de oferecer valor além da transação.

O desafio é grande, mas a oportunidade de criar experiências realmente relevantes para os clientes está ao nosso alcance – só falta coragem (e apetite ao risco) para dar o próximo passo.

Ulisses Zamboni é chairman e sócio-fundador da Agência Santa Clara.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.

Imagens: Shutterstock 

 

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