O discurso que marcou a virada na trajetória dos shoppings faz 10 anos

O discurso que marcou a virada na trajetória dos shoppings faz 10 anos

A temperatura era agradável em Nova York naquela manhã de domingo, dia 12 de janeiro de 2014. Fazia em trono de 7 graus centígrados. Como sempre, os brasileiros marcavam presença no primeiro dia do Retail’s Big Show, da NRF, um dos mais importantes eventos de varejo do mundo.

A estrela daquela 103ª edição da NRF prometia ser o ex-presidente americano George W. Bush, que falou no segundo dia. Porém, me interessava mais a sessão de abertura. Afinal, o tema era shopping centers.

O novo anexo do Javits ainda não havia sido construído. Portanto, às 8h30 da manhã, foi no comprido North Hall que Rick Caruso, presidente da Caruso Affiliated, subiu no palco para um discurso curto, de 24 minutos, que entraria para a história. Pelo menos para a história dos shoppings.

Caruso, que havia completado 55 anos apenas cinco dias antes, trajava um elegante terno azul-escuro, camisa branca e gravata turquesa. Lendo o discurso de forma bem ensaiada no teleprompter, ele começou a palestra citando o filme ‘Milagre na Rua 34’, de 1947, para enfatizar que os shoppings poderiam ser mais do que um conjunto de lojas. Deveriam ser um lugar onde as pessoas encontrariam hospitalidade e pertencimento.

Logo depois, Caruso recuou no tempo para explicar que já no tempo das cavernas a sociedade valorizava a ideia de comunidade. Afirmou ainda que os humanos possuem o instinto que os leva a querer estar junto de outras pessoas. A intenção era valorizar o shopping como local de encontros.

“As pessoas, por natureza, querem se envolver. Querem exercitar o senso de comunidade. Querem estar em um ambiente social. Isso é parte de estar vivo. Pense em como você se sente bem apenas em ver pessoas sentadas em um café a céu aberto. Parece festivo e convidativo. É o tipo de lugar que você gosta de estar”, exemplificou.

Até aí, tudo bem.

Mas Caruso não se contentou em defender a ideia do shopping como lugar de socialização e descontração, além de exaltar os empreendimentos da sua companhia, como o The Grove, um shopping aberto em Los Angeles. Ele bateu forte nos concorrentes, os shoppings tradicionais.

“Cheguei à conclusão de que, entre 10 e 15 anos, o shopping americano típico, se não for completamente reinventado, será visto como um anacronismo histórico, uma aberração de 60 anos que não mais atende às necessidades de consumidores e varejistas”.

Caruso prosseguiu, projetando na tela imagens de shoppings americanos envelhecidos. ”Olhe para isso. Esse é o status quo. Essa é a realidade atual para a maioria dos consumidores e lojistas. Isso parece o futuro para você? Eu penso que nós temos sonhos bem maiores que este. Durante um tempo isso pode ter atendido às necessidades de desenvolvedores – e até mesmo de consumidores – mas sua utilidade já não é a mesma”.

Hoje é fácil concordar que Rick Caruso tinha certa razão. Porém, naquela época, esse trecho enfureceu boa parte dos empreendedores de shopping centers nos Estados Unidos. Pouco tempo depois, encontrei com o então presidente do International Council of Shopping Centers (ICSC), Michael Kercheval, e comentei sobre essa palestra. Mike fez uma careta e apenas respondeu: “meu telefone não parou de tocar depois disso”.

Voltando à palestra do Caruso, em seguida, ele voltou-se para os varejistas. Afirmou que o digital não era um inimigo e que as lojas físicas e os shoppings tinham um papel a cumprir que ia além da venda. “Não projetamos nossos empreendimentos para fazer as pessoas comprarem, e sim para que elas tenham momentos agradáveis. E quando elas se sentem bem, elas compram e gastam mais”, ensinou.

Quando lemos, 10 anos depois, o discurso proferido naquele 12 de janeiro de 2014, tudo parece fazer muito sentido. Mas vale lembrar que naquele momento o e-commerce respondia por somente 6% das vendas totais do varejo americano. E os shoppings ainda surfavam a onda do sucesso em terras americanas. Caruso foi profético.

Apesar deste e de muitos outros alertas, ainda hoje há shopping centers que não abraçaram completamente a ideia mais abrangente do shopping como um lugar de encontros sociais, familiares ou profissionais, como espaço que promove descobertas ou proporciona momentos de alegria para seus frequentadores. E onde as pessoas podem até comprar coisas.

Durante sua apresentação na NRF, Rick Caruso contou ter ouvido de um de seus lojistas a frase: “a loja é a personificação física do que somos”. O conjunto de lojas, o ambiente, as experiências oferecidas, o acolhimento e, acima de tudo, o conceito por trás de cada um desses atributos, formam, da mesma maneira, a personificação do que cada shopping é.

Fica a pergunta: em pleno 2024, sabemos exatamente o que são os nossos shoppings e o que vendemos de verdade?

Nota: Se você quiser ler a íntegra do discurso de Rick Caruso na NRF de 2014, traduzido para o português, clique nesse link. Teremos prazer em disponibilizar uma cópia para você.

Luiz Alberto Marinho é sócio-diretor da Gouvêa Malls.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagem: Shutterstock

 

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