A automação está chegando com força no varejo. Os consumidores buscam novas formas de interação e querem muita personalização. Transparência e autenticidade importam mais do que nunca. É preciso unir os mundos digital e físico para criar não só pontos de venda, mas locais onde os consumidores possam ter uma experiência de marca positiva.
Essas tendências, que hoje guiam dez a cada dez varejistas, estão entre os insights que Kate Ancketill, fundadora e CEO da consultoria britânica GDR, destaca em palestras e eventos mundo afora.
Só que elas não foram descritas por Kate agora. Fazem parte do seu discurso há quase uma década, quando o risco de uma pandemia que obrigaria o fechamento das lojas não estava no radar de nenhuma instituição de saúde. Foram citadas e atualizadas por ela ano após ano em seus concorridos painéis na NRF Big Retail’s Show, um dos maiores eventos do setor no mundo, realizado sempre em janeiro em Nova York, nos Estados Unidos. A chegada da automação foi alertada por ela num longínquo ano de 2017. A onda phygital foi destacada em 2021.
Kate Ancketill prevê o futuro do varejo com base em muitas pesquisas e na experiência acumulada atendendo às maiores marcas de consumo do mundo. Ela é capaz de explicar com clareza tendências complexas, mudanças sociais ou tecnologias emergentes para praticamente qualquer pessoa. E, como se vê, acerta em quase tudo.
Em entrevista à revista Mercado&Consumo, a especialista alerta que as novas gerações não terão acesso a tantas coisas quanto seus pais, e por isso vão comprar menos e de forma mais consciente. Elas se preocupam com questões ambientais, o que também impacta na compra. Mas esperam que tudo esteja disponível por meio de um aplicativo, com total integração em todos os canais.
É prudente saber o que Kate Ancketill tem a dizer.
M&C: Você diz que vivemos uma era de “fim da abundância”, que tem impacto direto no comportamento do consumidor. Como essa realidade impacta também a dinâmica da indústria e do varejo?
Kate Ancketill: Várias coisas aconteceram no mundo para que chegássemos a esta nova era em que estamos entrando, que é a era do “fim da abundância”. Existem questões geopolíticas, como a guerra da Ucrânia, que resultou na escassez mundial de semicondutores. Há o problema do clima, que obviamente afeta todo o mundo – mesmo países como os Estados Unidos, que têm as suas próprias fontes de energia, estão sofrendo cortes de energia significativos como resultado de condições meteorológicas muito severas. E, claro, ainda existem os resquícios da covid-19, que levaram a crises de custo de vida e inflação elevada.
Considerando-se todos esses problemas, esta é uma das primeiras gerações que esperam estar em situação menos favorável do que as gerações anteriores. Os pais estão em melhor situação do que os filhos, e isso não acontecia há muito tempo em grande parte do mundo.
Para o varejo, é preciso aceitar que muitas pessoas simplesmente não podem mais ter acesso a algumas coisas, mesmo que possam comprá-las. E, em muitos casos, elas não podem pagar tanto quanto antes. Portanto, é necessário que todos os varejistas e consumidores pensem em como ser mais frugais, em como fazer mais com menos.
M&C: Você também alerta para a “economia da dopamina”. Como esse conceito mudou ao longo do tempo?
Kate Ancketill: Durante muito tempo, sempre que havia crises econômicas, existia o chamado “efeito batom”: as pessoas compravam pequenos itens de luxo para se animar porque, caso contrário, elas ficavam infelizes. Agora temos oportunidades diferentes por causa da tecnologia. Vemos muito mais experiências no varejo para atrair as pessoas e animá-las, deixá-las felizes e liberar um pouco de dopamina.
Alguns locais usam telas enormes para fazer as pessoas viverem experiências sensoriais onde estão. É como entrar na internet, mas sem usar fone de ouvido. Existem locais como o Outernet, na Tottenham Court Road, em Londres, que têm telas digitais de alta tecnologia e muitas experiências. Você paga por uma hora para caminhar em versões digitais de florestas tropicais com som e cheiro. A experiência em Aya, em Dubai, é outro exemplo [O Aya é uma espécie de parque tecnológico repleto de experiências].
Mas também podem ser apenas experiências imersivas e multissensoriais que você faz com seus amigos, tira fotos e registra para a posteridade nas redes sociais, aumentando seu capital social. Esse tende a ser o tipo de versão moderna do “efeito batom”.
M&C: Você disse na NRF, já em 2021, que o varejo físico se tornaria o sistema de apoio ao e-commerce. Você acha que as lojas estão assim agora?
Kate Ancketill: Acho que o varejo físico foi fundamentalmente desalavancado pelo digital. Na China, 50% das vendas são feitas pelo e-commerce. Claro que eles estão mais à frente do que todos os outros países no mundo – na Europa esse índice tende a ter cerca de 20% –, mas, essencialmente, as lojas físicas ficaram muito caras para operar. Os aluguéis estão em alta. Os impostos, as taxas, o custo de empregar pessoas, a capacidade de manter funcionários e de os formar neste conjunto de competências tecnológicas mais avançadas de que necessitam tornaram o varejo uma proposta mais difícil do que nunca no mundo físico. Além disso, como resultado da covid-19, muitas lojas físicas também não sobreviveram.
As lojas precisam ser integradas com um depósito para entregas locais, com o sistema de clique e retire e com o drive-thru. Porque pequenas lojas de varejo, especialmente em áreas como moda, não são mais suficientes em comparação com a vasta escolha que existe online. É preciso integrar a prateleira infinita às pequenas lojas. Elas têm de ser um local onde as pessoas encontram o essencial, mas o varejo precisa ir muito além do que aquilo que pode ser fisicamente acomodado em uma pequena loja. Isso significa que você tem que integrá-la ao comércio eletrônico. E a loja também precisa ser conveniente e divertida e, se possível, minimizar a pegada ambiental das entregas de comércio eletrônico por meio de coisas como centros de clique e retire e microcentros de distribuição.
M&C: O metaverso foi a palavra da moda em 2022 e agora só se fala em Inteligência Artificial. Como essas tecnologias estão impactando o varejo?
Kate Ancketill: O metaverso está no seu “inverno”. A tecnologia precisa se atualizar e por isso está sendo deixada de lado no momento, acredito até que corretamente. Já a Inteligência Artificial está mudando fundamentalmente a forma como fazemos varejo agora. Todo mundo está usando, todo mundo está experimentando, principalmente no backend, em especial no varejo de grande escala e com uma grande operação de comércio eletrônico. Pode ser usada para escrever descrições de produtos, contar histórias e responder aos clientes, o que reduz enormemente os custos de backend.
E, claro, também está sendo usada para otimizar operações, para dizer ao dono do restaurante quantos camarões ele provavelmente precisará em uma terça-feira na hora do almoço nesta época do ano, dependendo do clima e dos jogos de futebol e de tudo mais que está acontecendo. Isso ajuda as operações em termos da compra da quantidade certa de alimentos, de garantir o número certo de pessoal etc. É extremamente útil para cortar custos e, portanto, melhorar as margens, o que está claro que precisamos fazer porque, como mencionei, o custo do varejo físico tornou-se, em muitos casos, insustentável, a menos que você seja extremamente eficiente.
A IA ainda tem um longo caminho a percorrer. Estamos nos estágios iniciais, mas já está se mostrando extremamente útil para eliminar as coisas chatas que os humanos realmente não querem fazer.
M&C: Você já falou sobre as mudanças climáticas, mas o que você acha dos temas mais amplos do ESG? Você realmente acha que eles impactam o comportamento do consumidor?
Kate Ancketill: As gerações mais jovens definitivamente se preocupam muito com o meio ambiente e não querem trabalhar com marcas que não cumprem abertamente as suas obrigações de melhorar as suas credenciais ambientais. Vimos algumas marcas serem prejudicadas por cometerem erros ou fazerem greenwashing e serem descobertas. Portanto, existe definitivamente um perigo para uma marca se não melhorar a sua pegada de sustentabilidade ambiental.
Nossas pesquisas mostram que a geração X [entre 1965 e 1981] se importa com isso, mas não tanto. Os baby boomers [nascidos entre 1945 e 1964] também se importam, mas não tanto. A geração millennial [nascidos entre 1982 e 1994] realmente se importa. E as gerações Z e alpha [nascidos entre 1995 e 2010 e após 2010, respectivamente] realmente se importam. Elas querem comprar de marcas que mostram que se importam, tanto do ponto de vista ambiental, quanto do ponto de vista da inclusão social.
No entanto, tendo dito isso, é claro que também existem grupos com rendimentos mais elevados com mais vantagens do que grupos com rendimentos mais baixos. Os jovens normalmente têm menos dinheiro, e, assim, ainda vemos empresas que têm uma reputação ambiental muito questionável tendo um bom desempenho entre eles porque são baratas.
Portanto, o que as pessoas dizem que farão e o que realmente farão na privacidade da sua própria casa, diante da crise do custo de vida, são duas coisas muito diferentes. Infelizmente, a realidade é que, para atrair as pessoas para uma opção ambientalmente melhor, é preciso que o produto tenha o mesmo preço ou seja mais barato do que a versão alternativa. Esse é o desafio fundamental do varejo.
Os jovens têm ética, mas não têm necessariamente o conhecimento para compreender as implicações de suas ações ao fazerem essas compras de produtos muito baratos, geralmente de fabricação chinesa. E isso é uma preocupação. Nos países mais ricos, com grupos de rendimentos elevados, há uma compreensão muito mais avançada das implicações de cada compra que fazemos.
Algumas pessoas estão optando por ter cartões de crédito que medem a pegada de carbono de cada compra que você faz e corta seu limite após um determinado valor ser ultrapassado. Esta é uma atividade minoritária entre as pessoas basicamente ricas da classe média do Norte da Europa. Lentamente, estamos nos movendo na direção certa. Infelizmente para o planeta, suspeito que seja muito lentamente.
M&C: Ainda sobre os mais jovens, o que mais eles querem? Quais são os hábitos que eles têm e que não costumávamos ter?
Kate Ancketill: Acho que eles estão mais interessados no acesso do que na propriedade. Como mencionei, eles não serão necessariamente tão ricos quanto seus pais, então não necessariamente possuirão tantas coisas. Podem não ser capazes de pagar as suas próprias casas, talvez vivam de aluguel para o resto da vida, podem não ter tanto espaço quanto as gerações anteriores.
Então, possuir todas as suas coisas não é realmente uma opção; é melhor alugar, usar o streaming, assinar. Carros, por exemplo. Os jovens não esperam necessariamente ter um. Eles se juntarão a um clube e pegarão emprestado para usar quando for necessário. Isso exige novos tipos de financiamento, novas formas de seguro, compras em grupo e novas maneiras de fazer as coisas que não significam necessariamente cada pessoa ter itens caros para uso individual.
Atingimos em muitos países uma espécie de “pico” e não precisamos de mais coisas. Preferimos ter experiências e gastar nosso dinheiro melhorando nosso capital cultural, que depois compartilhamos com o mundo nas redes sociais, mostrando-nos escalando montanhas, andando de skate ou correndo por aí, em vez de comprar relógios.
Acho que esses hábitos estão aqui para ficar. As gerações jovens nasceram como nativas digitais e esperam que tudo esteja disponível por meio de um aplicativo com total integração em todos os canais. Pesquisas mostram que os alphas estão mais preocupados com a sua privacidade online. Portanto, eles podem ter uma pegada menor em termos de programação pessoal de informações que compartilham, estão mais conscientes das questões de privacidade. E ainda assim, é claro, eles viverão online e consumirão online. A maior parte de seu entretenimento será por meio das redes sociais e do YouTube.
Acho que a boa notícia é que a geração alpha prefere o varejo físico em comparação com a geração anterior. Ela gosta do analógico, quer estar no mundo real com pessoas reais. Sair, estar em espaços físicos, acho que tudo isso durará definitivamente até a próxima geração – pessoalmente, acho que para sempre.
M&C: Falando em futuro, quais serão as consequências no longo prazo da pandemia no varejo e nos negócios em geral?
Kate Ancketill: Como mencionei antes, aumentou a velocidade de desalavancagem do varejo físico e de sua substituição pelo comércio eletrônico. Qualquer coisa que não estivesse ou não pudesse ficar online muito rapidamente obviamente não gerava dinheiro durante o lockdown. Portanto, isso acelerou a confusão pela qual todos temos passado nos últimos 20 anos para melhorar a capacidade online de alternar entre canais físicos e digitais, conforme necessário. Coisas como o clique e retire foram aprimoradas e se tornaram fáceis para que todos possam acessá-las, incluindo idosos que não são nativos digitais, por exemplo.
Mas também acho que, no geral, isso eliminou os vulneráveis. Muitas empresas não sobreviveram, principalmente as que tinham vulnerabilidades estruturais e econômicas. O que a covid-19 fez foi sacudir essa árvore para que o que sobrou fosse mais robusto e implantasse tecnologias modernas para garantir que fosse rentável e eficiente.
O backend operacional foi melhorado para dar resiliência para futuras paralisações potenciais ou outras pandemias. Isso diminuiu o patrimônio físico, provavelmente de forma permanente. Esperamos que o que sobreviveu seja melhor e mais adequado ao cliente moderno.
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