O fato é conhecido e reconhecido. E a pandemia só fez aumentar. Nos últimos anos, cresceu a parcela de despesas com alimentos prontos e preparados fora do lar em relação aos que são comprados para serem preparados em casa.
Em termos quantitativos, o que representava 24% há dez anos passou para 37% em 2018. No período da pandemia houve retração desse percentual, mas nessa retomada de mercado continuará evoluindo, sendo que em, algumas grandes cidades do Sudeste do País, esse número deverá se aproximar dos 40%.
E, como referência, nos Estados Unidos o percentual de dispêndios com foodservice – alimentos preparados fora do lar – no total das despesas com alimentos é 48%.
Mas a realidade no Brasil é que poucos supermercados, hipermercados e conveniências têm prestado a devida atenção para essa realidade. Cada vez mais as famílias, por mudança de hábito e/ou necessidade, vão comprar nas lojas de varejo alimentar os produtos para serem preparados e irão comprar os produtos prontos ou semiprontos. E com isso vão perder “share of pocket” nas despesas com alimentos e os setores ligados ao foodservice e a própria indústria estão avançando e ganhando esse mercado.
O recente movimento do Pão de Açúcar em sua nova loja, ampliando essa oferta, da mesma forma como já vinha fazendo em algumas lojas de conveniência, mostra que finalmente algumas redes estão acordando para esse desafio mesclado com oportunidade.
Especialmente nas lojas de conveniência, nas quais o padrão internacional é de uma participação de até 40% em foodservice, estamos muito atrasados na incorporação e aumento da representatividade dessa área no varejo alimentar no Brasil.
E restaurantes, dark kitchens, fast-food, casual dinning e todos os operadores e fornecedores de alimentos prontos ou semi-prontos só agradecem a demora por atuar nesse mercado que, como resultado, será mais difícil reconquistar.
No varejo alimentar internacional esse movimento de incorporação do foodservice já está muito mais avançado e basta lembrar exemplos nos Estados Unidos da Whole Foods, Wegmans, das redes de conveniência e dos supercenters, como Walmart e Target, sem falar no avanço que essa categoria – foodservice – teve nas drugstores e nos clubes de compra, como Costco e outros. Em outra perspectiva, é importante resgatar que a Nordstrom, ícone de lojas de departamentos focada em moda, já opera mais de 400 opções de foodservice em suas lojas.
Na Europa, em especial Itália, França, Espanha, Portugal e Inglaterra, esse avanço foi significativo e já está consolidada e crescente a participação da categoria foodservice no varejo alimentar, sendo que alguns como Auchan, com sua rede Flunch, ou Sonae em Portugal, com a marca Bagga, chegam a atuar com redes de foodservice ou restaurantes em paralelo ao aumento da oferta em suas operações mais tradicionais.
Na China, maior percentual mundial de foodservice no conjunto das despesas com alimentos, as principais redes também têm crescente oferta e cada vez mais diversa e profissional nessa categoria.
Esse atraso no Brasil está ligado à complexidade e diferença de modelo de negócio na produção, conservação e venda de alimentos prontos dentro das operações tradicionais. Algumas empresas, como Natural da Terra e Hortifruti, avançaram nos últimos anos para desenvolver e incorporar esse conhecimento e competência, cientes da transformação estrutural do mercado.
No passado a área de “rotisseria” era um híbrido de aproveitamento de perecíveis e oferta incremental de produtos prontos, mas hoje essa realidade é totalmente diversa e passou a ser crítico desenvolver competência, conhecimento, excelência e busca de diferenciação para tentar manter ou crescer participação nos alimentos.
Essa categoria tem margens significativamente mais altas, em torno de 70% a 80%, quando comparadas com os alimentos tradicionais. Mas, se não for muito bem operada e controlada, pode se tornar prejuízo. E muitos têm aprendido sobre esse dilema.
Interessante destacar que a inflação da alimentação no lar, que chegou a quase 17% em meados deste ano sobre os doze meses anteriores, cresceu muito mais do que a da alimentação fora do lar, que permanecia na faixa de 7%, por conta do esforço do setor de foodservice para manter preços competitivos no cenário adverso.
Questões envolvendo produção local ou externa, incorporação de parceiros, gestão do abastecimento e estoques, desenvolvimento de cardápios, a própria composição da linha e, principalmente, como conquistar excelência, reconhecimento, consistência e diferenciação, conceitos básicos para quem opera foodservice, são simples de serem enunciadas, mas complexas para serem atingidas.
Mas a dura realidade é que, ainda mais tratando-se de alimentos, o conceito do “Decifra-me ou te devoro” é mais do que oportuno.
Ou aprende, incorpora e se torna competente, ou entrega o mercado para os operadores novos ou tradicionais do foodservice, como tem acontecido até agora.
Vale refletir.
E agir.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
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