Poucos setores viveram transformações tão intensas em seu modelo de negócio quanto os centros comerciais, que deixaram de ser apenas destinos de compras e tornaram-se espaços multifuncionais, com foco em serviços, entretenimento e experiências.
Essa transformação foi acelerada na pandemia, com o crescimento do comércio eletrônico e do trabalho híbrido. À medida que mais pessoas passaram a trabalhar de casa, a demanda por comodidades como restaurantes, cafés, academias e coworking aumentou e levou os centros comerciais a se adaptarem, criando espaços que atendam a essas necessidades.
Nos shopping centers, são cada vez mais comuns alamedas de serviços que atendam demandas urgentes do consumidor, como conserto de roupa e de aparelho eletrônico, dentista, cursos de línguas, cabeleireiro, manicure, entre outros. “Esses serviços fazem com que o consumidor frequente o shopping mais assiduamente”, afirma Luis Augusto Ildefonso da Silva, diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop).
Silva explica que, além do comportamento do consumidor, essa mudança ocorreu para suprir o aumento da vacância na pandemia, que passou de uma média de 4% para 12%.
A diversificação no mix de operações tem como âncora principal a gastronomia. Segundo pesquisa da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce), 21% dos frequentadores vão aos shoppings por conta da alimentação.
“A gastronomia virou uma nova ancoragem. As operações de alimentação, não apenas de fast-food, têm se multiplicado dentro dos shopping centers. E não ficam mais só concentradas em uma alameda”, afirma Luiz Alberto Marinho, sócio-diretor da Gouvêa Malls.
Nos empreendimentos administrados pela Ancar Ivanhoe, dois pilares vêm se destacando nos últimos meses: a gastronomia e o bem-estar.
“A gastronomia em 2023 já representa 20% do total das vendas. Esse é um dado muito relevante por mostrar, na prática, que a venda é a consequência de experiências únicas. O bem-estar vem ganhando cada vez mais relevância neste ano, mês a mês, com um crescimento de 20% na comparação com 2022. Isso demonstra uma atenção maior dos clientes com a saúde, cuidados pessoais e, principalmente, um tempo de qualidade
para se distrair e recompor as energias”, afirma Evandro Ferrer, CEO da Ancar.
Outro segmento que tem crescido nos centros de compras é o de entretenimento, que não se resume apenas ao cinema e ao parque. Está havendo uma diversificação de formatos, tanto em termos de eventos, quanto de instalações fixas e operações pagas.
“Construir lugares agradáveis dentro dos shopping centers para garantir experiências atraentes e convenientes é algo que a gente chama de placemaking. Isso vai desde ter parques para crianças e food halls até fazer eventos de entretenimento. Basicamente, é criar espaços, não apenas atrações, para que as pessoas possam ficar, passar tempo e se sentirem acolhidas. A compra acaba acontecendo como uma consequência disso tudo”, destaca Marinho.
Com 27 empreendimentos em seu portfólio, 17 como sócia e 10 sob sua gestão, a Ancar tem investido, nos últimos três anos, em espaços proprietários, realização de shows, eventos de gastronomia e exposições culturais.
“Começamos a desenvolver áreas que remetessem à extensão da casa e, principalmente, nas quais os clientes se sentissem parte integrante dos shoppings. O intuito é proporcionar experiências inovadoras, que gerem conexões e construam memórias afetivas”, diz o CEO da Ancar.
Os projetos, explica, levam em conta as particularidades de cada shopping. Como exemplos de espaços placemaking, Ferrer cita o Jardim Urbano, no Shopping Conjunto Nacional, em Brasília (DF), que conta com um ambiente multiuso de convivência, incluindo um espaço colaborativo e criativo, e o Quintal do Ban, no Shopping Parque das Bandeiras, em Campinas (SP), com cenários para fotos, pet park e play kids.
Experiência do consumidor
Além de oferecer espaços atraentes e inovadores, os shopping centers têm usado a tecnologia para melhorar a experiência do consumidor. As inovações vão desde mapas virtuais que usam geolocalização para indicar as lojas até aplicativos que permitem o acesso direto ao estacionamento.
O projeto Shopping 5.0, da Ancar, por exemplo, facilita a comunicação entre o lojista e o consumidor por meio de dois aplicativos integrados. Através do Hub do Lojista, as marcas podem cadastrar ofertas e realizar promoções e comunicações que são disponibilizadas automaticamente no aplicativo do consumidor.
Com a ajuda do CRM e dos dados, os empreendimentos vão evoluir para um modelo que conecta quem quer comprar com quem quer vender, gerando valor para lojistas, anunciantes e consumidores.
“A tecnologia não é o fim. Ela é o meio e existe para melhorar a experiência do consumidor. O mais importante é a tecnologia utilizada para monitorar o comportamento do consumidor para que ele receba ofertas que sejam relevantes e, consequentemente, aumente as vendas das lojas”, afirma Marinho.
Entre os desafios do investimento em tecnologia, está o de atrair um público mais jovem de consumidores, como os millennials e a Geração Z [de pessoas nascidas entre 1982 e 1994 e entre 1995 e 2010, respectivamente].
“Os jovens gostam de shopping centers. Os millennials e a geração Z utilizam os shoppings como lugares de encontro. No futuro, vamos ver os shoppings investindo em espaços virtuais, com presença no metaverso e games, para se conectar com esse consumidor “, afirma Marinho.
Pensando nessa aproximação, a Ancar Ivanhoe começou a rodar no Shopping Nova Iguaçu, na cidade de mesmo nome, no Rio de Janeiro, o projeto CriadoreZ, que tem como foco a formação de laços e de relacionamento com essa geração por meio de projeto de cocriação com esses jovens.
A integração entre o físico e o digital nos centros de compras provocou uma mudança de comportamento do consumidor, que hoje vai aos shoppings já com a compra decidida. Com isso, o tempo médio de permanência, que ficava de 1h20 a 1h30 antes da pandemia, caiu para algo entre 30 e 40 minutos.
“O comércio eletrônico evoluiu demais. O consumidor pesquisa antes de ir ao shopping. Ele já vai com a compra definida ou só para retirar o produto”, comenta Ildefonso da Silva, da Alshop.
Já na pandemia, os shoppings se adaptaram com a criação de e-commerce e cerca de 70% dos lojistas estão no comércio eletrônico. As mídias sociais são outro importante canal de comunicação com o consumidor. “As mídias sociais são fundamentais para criar uma relação entre o cliente e o shopping. Por exemplo: o consumidor que quer comprar uma blusa começa a busca pelo marketplace. O shopping fica ciente e oferece mais alternativas pelas redes sociais. Isso aumenta o leque de ofertas”, afirma Silva.
Segundo Marinho, as empresas que não se adaptaram a essas mudanças na velocidade necessária estão reduzindo sua presença nos shoppings.
Para David J. Contis, fundador do Agora Advisors Inc. e ex-presidente da Simon Property Group Malls Platform, embora as operações dos shoppings no Brasil e na América do Sul contem com menos opções de modelos do que nos Estados Unidos, o fato de serem mais baseadas no entretenimento, serviços, estilo de vida e saúde é uma vantagem.
Contis acredita que as marcas nativas digitais vão continuar abrindo lojas nos shoppings. “Estar online já não é suficiente. Os consumidores querem ter alternativa em relação a como farão suas compras”, diz.
Outra tendência, segundo ele, é que as lojas de departamento serão menos importantes. E as que sobrarem terão de ser muito criativas. No Brasil, Contis crê na consolidação do setor. “A tendência é a consolidação do setor. Em vez de vários shoppings espalhados, teremos alguns estrategicamente posicionados no mercado.”
Espaços multiusos
Não são apenas os shoppings que apostam em espaços multiusos, com mix variado de lojas. Unidade de negócios do Grupo Carrefour Brasil, com mais de 300 galerias comerciais em 20 Estados e 200 municípios, o Carrefour Property busca proporcionar conveniência, opções de serviços, lazer e entretenimento aos clientes de seus empreendimentos.
Um exemplo é o Paseo Alto das Nações, empreendimento multiuso com um hipermercado Carrefour na zona sul de São Paulo (SP), uma torre mista, com salas de escritórios e moradias, e um centro comercial voltado para conveniência e gastronomia. No mix de lojas, Bio Ritmo, Cobasi, Boticário, Cacau Show e Drogaria Carrefour, além de uma praça de alimentação com restaurantes como Outback, Saje e Frutaria.
“Um dos destaques desse projeto é a praça de convivência de 32 mil², acessível ao público, proporcionando um ambiente de lazer e entretenimento. Além disso, o empreendimento está estrategicamente ligado à estação de trem Granja Julieta, tornando-o facilmente acessível para os moradores da região”, afirma Liliane Dutra, CEO do Carrefour Property.
Proprietário do Atacadão e Sam’s Club, o Carrefour quer aproveitar esse diferencial para explorar as áreas de vendas e o tráfego de clientes, apostando na sinergia dos empreendimentos.
“Temos mais de 50 projetos imobiliários para serem lançados com foco no cliente. Um dos projetos mais recentes são as lojas combos que envolvem nossas unidades de negócios. A ideia é ter uma loja Sam’s Club junto com uma unidade Atacadão ou Hiper Carrefour”, diz Liliane.
Empresa que administra 29 centros de conveniência com a rede ComVem, a HBR Realty também busca oferecer um mix de serviços, com produtos e gastronomia, que tenham sinergia com o entorno da loja. “A proximidade com o consumidor em locais de grande circulação e em um momento de compra totalmente diferente de um shopping é importante para alavancar as vendas e se destacar numa localização estratégica”, afirma Luiz Henrique Rodrigues Costa, CEO da HBR Realty.
Costa destaca que, para atender ao consumidor que busca facilidades em seu dia a dia, o perfil de lojas da ComVem é formado por 50% de marcas locais e 50% de marcas conhecidas de mercado, de grandes redes. “Cada vez mais o consumidor busca por facilidades que proporcionem comodidade ao seu dia a dia. Por esse motivo, o modelo de conveniência ganha forte apelo.”
Com 35 empreendimentos em andamento, a ComVem quer mais do que dobrar a rede em operação até o fim de 2025, passando dos atuais 29 para 64 unidades.
Falta de cultura
Um mercado que ainda tem bastante espaço para avançar no Brasil é o de outlet. O maior desafio ainda é a falta de cultura entre os varejistas. Diferentemente dos Estados Unidos, em que grande parte dos estoques das marcas é produzida para os outlets, no Brasil ainda prevalece a ideia de que outlets se destinam apenas a produtos “sobras”.
“Ainda não temos essa cultura, mas já temos alguns varejistas brasileiros investindo em marcas próprias para outlets. Temos um conjunto de consumidores que gostam muito desse conceito de marcas por preços acessíveis”, analisa Marinho, da Gouvêa Malls.
Apesar de o segmento de outlets estar evoluindo em ritmo menor do que o de outros centros de compra, Marinho acredita que esse modelo deve crescer no País, pois é uma estratégia importante para o varejo, de conquista de território, de mercado e de expansão de base de clientes.
“O Brasil já possui um público consumidor ávido por produtos de marcas de qualidade a preços acessíveis. Os outlets têm evoluído no Brasil no sentido de agregar mais alimentação e entretenimento, na mesma linha que os shoppings têm feito. É interessante que eles não estão se posicionando no Brasil apenas como centros de compras de produtos de marcas mais baratas, mas também como lugares agradáveis e atraentes para os consumidores”, afirma Marinho.
Imagens: Divulgação