Uma conjugação de fatores tem feito com o que o varejo orientado para valor tenha se tornado ainda mais relevante em todo o mundo.
E isso também aconteceu no Brasil, porém, com características muito próprias por conta do papel que a informalidade desempenha no comportamento do varejo, criando inequidade competitiva e prejudicando emprego, renda e o desempenho das empresas formais.
A escalada de crescimento do varejo orientado para valor já era uma realidade anterior à pandemia e está relacionada ao comportamento mais reflexivo e racional de consumidores, cada vez mais informados e com maior número de alternativas, buscando mais por menos. E a expansão do e-commerce só ampliou o leque de alternativas, colocando ainda mais opções e maior acesso à informação.
O cenário complexo na economia gerado pelo rescaldo da pandemia em muitos países, com a escalada da inflação e sem correção de salários, criou condições ainda mais fortes para crescimento dessa opção do valor.
É esse quadro que fez crescer a participação de mercado de operações de hard discount no alimentar, como Aldi, Lidl, Netto ou mesmo Trader Joe’s na Europa e Estados Unidos. E que expandiu também na América Latina, com marcas como Dia e Tottus e outras locais.
Cresceu também o negócios clubes de atacado como Costco, Sam’s Club, Metro e BJ’s também nos Estados Unidos e Europa. No mundo da moda, acelerou o crescimento de H&M e Primark e obrigou o reposicionamento de Zara. E no mundo dos centros comerciais fez crescer de forma marcante as operações focadas em outlets.
No Brasil, seu mais forte impacto aconteceu com os atacarejos ou atacados de autoserviço. Inspirados nos clubes de atacado dos Estados Unidos, se tornaram o mais relevante formato no varejo alimentar no País e desafiam os hipermercados e supermercados por sua oferta muito mais competitiva em preço.
Atacadão, Assai, Spani, Tenda e muitos outros surgidos nos últimos anos se constituem ainda no formato com maior potencial de crescimento por conta dessa mudança de comportamento de consumidores.
O sucesso do formato hard discount, conceito mais tradicional em alimentação que nasceu na Europa e se espalhou também nos Estados Unidos e outros países na América Latina, que trabalha com sortimento limitado, localização conveniente, preços mais baixos, operação simples e forte presença de marcas próprias, não vingou por aqui. Em boa parte, pela concorrência da informalidade.
A rede Dia, que opera por aqui com lojas próprias e franquias, é a que mais se aproxima desse conceito, ainda que tecnicamente seja considerada um soft discout.
A empresa originalmente era parte do Carrefour na Espanha e mais tarde foi incorporada pelo Grupo LetterOne, que tem entre seus controladores os antigos operadores da rede X5, da Rússia, e tem mais de 6 mil lojas na Espanha, Portugal, Argentina e Brasil.
A razão fundamental para que o hard discount não prospere no Brasil é que a informalidade consegue ser mais competitiva em preço, pelo não pagamento de impostos, taxas e corretos procedimentos de registro e direitos trabalhistas em relação às operações estruturadas, organizadas e com poder de compra das redes formais. O próprio Carrefour, Walmart e Pão de Açúcar tentaram operar com esse conceito e foram obrigados a rever seus planos de expansão desse conceito.
Os maiores operadores de alimentos no Brasil têm se concentrado na expansão de seus atacarejos, que têm uma proposta menos conveniente, num momento em que os consumidores pedem alternativas com preços mais competitivos combinados com alguma conveniência.
O e-commerce e alguns marketplaces também entregam soluções interessantes de valor e conveniência, em alguns casos contando com alguma informalidade para ser ainda mais competitivo.
Estudo realizado para o IDV, em 2020, estimou que a informalidade fiscal no varejo do Brasil estaria numa faixa entre R$ 170 e R$ 220 bilhões e que 22% desse total ocorreria nos canais digitais.
Muito além da questão da sonegação fiscal e da omissão nas práticas trabalhistas, a informalidade cria um desestímulo ao crescimento e expansão dos negócios formais e, neste momento mais crítico, tem obrigado as redes formais a fecharem lojas e operações, como tem sido reconhecido por algumas redes do setor de moda e confecções.
Importante destacar também o impacto que o Auxílio Brasil tem trazido ao estimular o emprego informal, o bico sem registro, pois assim ainda é possível receber o auxílio. Algo importante como fator de redução da pobreza, mas que está estimulando o desemprego e a informalidade.
A realidade é que a informalidade, fiscal e trabalhista, drena emprego, renda e oportunidade de crescimento da arrecadação tributária, além de impedir o desenvolvimento de novos conceitos e formatos. É um mal que assola o Brasil e que não tem sido enfrentado como deveria ser.
As atuais propostas em discussão da reforma tributária não necessariamente irão inibir essa situação. Muito pelo contrário. Poderão até estimular seu crescimento, caso não se atente à fundamental necessidade de cobrar de quem não paga e não se queira aumentar a carga de quem já paga muito.
Vale refletir.
Nota: Muitas dessas reflexões e soluções para desenvolvimento de negócios serão apresentados e debatidos no Latam Retail Show, que terá como tema central Back to the Future, no próximo mês de setembro.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.