Seja para reduzir o impacto no orçamento doméstico, seja com o foco na sustentabilidade, reúso ou redução de consumo, o varejo de valor está cada vez mais presente na vida do brasileiro. Esse conceito, mundialmente conhecido em períodos de crise, é a forma que a população encontra para sobreviver de acordo com a sua realidade no momento.
Segundo Eduardo Yamashita, COO da Gouvêa Ecosystem, principalmente no setor de alimentação, a busca por canais mais baratos é uma realidade. O impacto da inflação no orçamento familiar foi maior e as famílias precisaram repensar o seu consumo para sobreviver.
De janeiro a junho de 2023, enquanto a inflação nos alimentos chegava a 45%, a inflação geral cresceu 25% e a renda do brasileiro, 24%.
“Mesmo com a renda próxima da inflação geral, a alimentação dentro do lar ficou muito mais cara, e as famílias brasileiras tiveram que reorganizar o seu orçamento para acomodar esse aumento de custo”, diz.
Em média, as famílias brasileiras gastavam 13% do seu orçamento em alimentos em janeiro de 2020 e, em junho de 2023, o percentual subiu para 16%.
“Quando você tem um movimento de aumento tão grande, numa linha tão importante, as famílias passam a realocar outras linhas do seu orçamento para alimentação e, obviamente, a buscar opções de canais, produtos de outras marcas e até de categorias diferentes para equilibrar este orçamento”, comenta o COO.
Yamashita conta que esse movimento não ocorre apenas nas crises do Brasil, mas em qualquer país. “Quando a gente tem uma restrição do orçamento familiar ou aumento de preços, é natural a busca dos consumidores por alternativas que viabilizem e encaixem no orçamento familiar.”
Uma dessas opções é a migração para canais mais baratos. Se o varejo de proximidade – os mercados de bairro – está caro, o consumidor vai para um supermercado. Se costuma comprar em um supermercado, vai para um hipermercado, atacarejo ou atacado.
“Ele vai se movimentar. Mudar a bandeira do supermercado que frequenta e buscar soluções em novos canais, como o digital, por exemplo. Nesse cenário, vale trocar o produto, experimentar novas marcas e até mudar de categoria, em uma medida drástica por necessidade. Exemplo: trocar a carne vermelha pela de frango.”
Yamashita lembra as crises enfrentadas na Europa e nos Estados Unidos. “Na Europa, durante a crise, houve um aumento de lojas de marca própria, que ofereciam produtos mais baratos. Nos EUA, durante a crise imobiliária, houve uma migração de consumo para os clubes de compra e atacado.”
Vale destacar que os maiores operadores de alimentos no Brasil têm se concentrado na expansão de seus atacarejos – conceito criado a partir da junção de duas práticas comerciais muito populares: atacado e varejo.
“Os atacarejos hoje pegam todas as classes sociais, mas pegam um pouco as classes mais baixas e, também, o B2B [business to business], como hotéis, restaurantes e padarias, que são altamente relevantes e usam esse canal para se abastecer”, afirma Yamashita.
Segundo ele, a competição nos atacarejos vem aumentando, com mais empresas brigando pelo mesmo mercado. “Acho que esse formato vai continuar crescendo, mas muito provavelmente num ritmo menor que o visto nos últimos 10 ou 15 anos”, afirma.
Lojas de desconto e o mercado informal
Outro formato de varejo que nasceu na Europa e se espalhou para os Estados Unidos e outros países na América Latina é o hard discount (lojas de desconto, em português). O conceito, mais tradicional em alimentação, trabalha com sortimento limitado, localização conveniente, preços mais baixos, operação simples e forte presença de marcas próprias. Essas lojas, no entanto, não vingaram no Brasil, em boa parte, pela concorrência da informalidade, segundo Yamashita.
A informalidade consegue ser mais competitiva em preço, pelo não pagamento de impostos, taxas e corretos procedimentos de registro e direitos trabalhistas em relação às operações estruturadas, organizadas e com poder de compra das redes formais. O próprio Carrefour, o Walmart e o Pão de Açúcar tentaram operar com esse conceito e foram obrigados a rever seus planos de expansão do modelo.
Varejo de atacado e troca de marcas para controlar orçamento
Para Leonardo Miguel Severini, presidente da Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores (Abad), a cultura de buscar alternativas mais baratas, mudar de estabelecimento de compra ou trocar de marca é recorrente na vida do brasileiro em momentos de aperto.
“O consumidor não vai deixar de usar azeite ou comer chocolate. Ele troca a marca e continua consumindo”, comenta Severini.
Há outro movimento, de acordo com ele, de famílias que buscam melhores preços conforme o tamanho da embalagem. Essas famílias saem da sua casa de carro para comprar produtos da cesta básica, como arroz, feijão, óleo, para economizar. Se costumavam comprar um vidro de azeite de 400 ml, por exemplo, e veem a opção de comprar uma garrafa de 4 litros por um preço mais vantajoso, elas fazem a troca.
Essas famílias mantêm, no entanto, compras de menor valor no seu entorno: presunto, xampu, desodorante e outros itens de que necessitam no dia a dia.
Segundo ele, o que se viu nos últimos anos foram famílias e pequenas empresas se endividando em níveis históricos, por causa da elevada taxa de juros e da diminuição do emprego no ano passado.
“Hoje, o desemprego vem diminuindo. As empresas estão contratando e trabalhando para honrar dívidas e os compromissos assumidos durante a crise.”
Severini defende que uma bandeira a ser levantada dentro do varejo de valor é o combate ao desperdício, principalmente no setor de alimentação.
“A Abras [Associação Brasileira de Supermercados] apresentou um trabalho para propor a mudança da expressão ‘prazo de validade’ nos produtos. Em vez disso, as embalagens teriam o termo ‘recomendação de data’ e incluiriam a informação de que isso pode afetar o frescor ou o sabor do produto. Isso já é uma realidade lá fora”, conta.
Com a inflação controlada, os juros caindo e o nível e a qualidade do emprego subindo, a tendência é de que o consumidor volte a comprar produtos de segmentos esquecidos durante a pandemia. Caso de móveis, bens duráveis, vestuários e material de construção.
“Também deve ocorrer a volta da procura por serviços, conveniência e produtos e marcas melhores”, afirma Yamashita.
Brechó: alternativa sustentável e para reduzir orçamento familiar
Yamashita conta que os brechós, até pouco tempo mais presentes em lojas físicas, ganharam o universo digital e começaram a crescer sua presença nos canais digitais, como os marketplaces.
O que essa digitalização gerou na prática? Acesso a produtos usados, remanufaturados de outras regiões e um leque muito maior de consumidores e de empresas. “O recommerce é uma tendência, seja por causa do aperto no orçamento, seja pela sustentabilidade. Cada vez mais pessoas aderem a esse mercado.”
Severini conta que, atualmente, tanto empresas quanto pessoas têm adotado a economia circular, e a opção vem crescendo porque sempre há quem quer fazer dinheiro e quem quer consumir.
Na economia circular, associa-se o desenvolvimento econômico ao uso consciente de recursos naturais, por meio do reúso de materiais para criar produtos de qualidade e do próprio reúso de produtos de segunda mão que geralmente seriam descartados.
O economista Ulisses Ruiz de Gamboa, da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), também acredita que os brechós vêm ganhando destaque no mercado por causa do avanço da economia circular e sua relação com sustentabilidade e preço.
“Antigamente, havia preconceito em se comprar roupas usadas. Hoje, a economia circular vem deixando este mercado cada vez mais chamativo, mais interessante. Eu mesmo já comprei roupas boas em brechós. É uma tendência que veio para ficar”, diz.
Assim como Yamashita, ele tem observado a ampliação do leque de atuação da modalidade, na migração de loja física para virtual ou vice-versa ou, até mesmo, nas duas opções. “É um mercado que uniu bom preço, qualidade e consciência ambiental. E as pessoas estão cada vez mais preocupadas com esses pilares.”
Rede de brechós projeta crescimento de 50% e faturar R$ 190 mi em 2023
A empresária Bruna Vasconi resolveu empreender no ramo de brechó ainda na faculdade de Psicologia, quando começou a vender itens dos filhos, de familiares e amigos. Na época, chegou a abrir uma loja em parceria com uma amiga, mas decidiu seguir carreira solo ao abrir sua primeira loja da Peça Rara Brechó, em 2007.
A marca, que virou franquia em 2020, conta com uma sócia de peso desde 2021: a atriz Deborah Secco. Segundo Bruna, a previsão é de que a rede contabilize 140 lojas abertas até o fim do ano e atinja um faturamento de R$ 190 milhões.
Bruna conta que houve um crescimento exponencial nas vendas nos últimos anos. A empresária atribui o resultado à ampliação da rede e ao fato de muitas pessoas se darem conta de que poderiam reutilizar peças e se desfazer das que não usam mais também, fazendo girar a economia.
“Meus filhos, por exemplo, separam itens que vão de roupas e acessórios a brinquedos para vender nas lojas Peça Rara. Com o dinheiro arrecadado, compram outras peças que estejam precisando. A utilização de itens de segunda mão é mais do que um hábito, é uma mudança de vida”, comenta.
De acordo com a empresária, o consumidor pode deixar itens que não quer mais usar em uma das lojas, em consignação. O valor da venda é transformado em créditos que podem ser utilizados nas próprias lojas.
A rede também conta com o Instituto Eu Sou Peça Rara, criado para dar uma destinação aos itens que não são aprovados para comercialização nas lojas. “Vendemos a um preço de R$ 5 a R$ 50 as peças doadas pelos fornecedores e o valor em dinheiro é doado integralmente aos projetos do instituto e associações parceiras”, explica Bruna. O instituto tem uma unidade em Brasília e outra em Cuiabá. A terceira será inaugurada em São Paulo até 2024.
Márcia Rodrigues, em colaboração para Mercado&Consumo.
Imagens: Shutterstock