Para o varejo, as últimas semanas tiveram momentos de tensão. É incomum iniciar um artigo com essa afirmação, porém, foi a mais inquestionável realidade. Esteve em pauta a mais retumbante tramitação do Projeto de Lei 914/24, do projeto Mover, no qual previa o retorno do imposto de importação para pequenas remessas de até U$ 50.
Este assunto não é novo, afinal, o varejo questiona o não pagamento do imposto de importação para as vendas efetuadas pelas plataformas eletrônicas cross-border desde a época em que já existia o imposto de importação de 60% em governos anteriores, descaradamente ignorado e não fiscalizado, abrindo uma enorme porta para entrada de produtos subfaturados, falsificados, sem certificação das agências reguladoras, entre outros descalabros. E, ainda, ignorando os 60% de imposto por meio de um desvio de uso das regulamentações da Receita Federal existentes à época, em que os produtos asiáticos entravam (e ainda entram) no País como sendo remessa de pessoa física do exterior para pessoa física no Brasil (C2C). Ficou famosa a frase do secretário da Receita Federal: “Um único chinês enviou para seus amigos no Brasil mais de 16 milhões de pacotes”. Haja amigos.
Chegou-se ao limite do suportável. E o Ministério da Fazenda, por meio da Receita Federal, criou o programa Remessa Conforme, que teve o apoio, na sua construção, das mais diferentes entidades privadas e públicas. Todo pacote que entrasse no País seria identificado e, sendo pessoa física para pessoa física (C2C), haveria zero de imposto de importação; para o caso de pessoa jurídica para pessoa física (B2C), haveria 60% de imposto de importação, como sempre foi.
Eis que o varejo e a indústria (que, posteriormente, sentiu fortemente os efeitos) foram surpreendidos pela publicação da IN 2.146/2023 e da Portaria MF nº 612/2023, ambas no mesmo dia, que promoveram ajustes no Remessa Conforme, bem-estruturado, com a possibilidade de conter a fraude e o contrabando, com zero de imposto de importação. O que era ilegal tornou-se legal e, o pior, sem o pagamento de qualquer imposto. Foi criada uma desigualdade tributária jamais vista no País, um enorme desiquilíbrio concorrencial. Muitas justificativas foram apresentadas, como a de atrair as plataformas eletrônicas para a formalidade, mas nada justificou até o momento os malefícios causados pela adoção de zero de imposto de importação.
Rapidamente explicando: enquanto, ao longo da sua cadeia, um produto fabricado, distribuído e vendido no Brasil tem carga tributária média de 109,9%, segundo estudos do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário), o vindo das plataformas eletrônicas cross-border estava com zero de imposto de importação.
É inimaginável achar que haveria condições de as empresas brasileiras competirem no mercado nacional com essa vantagem tributária a favor das plataformas eletrônicas cross-border, que, visivelmente, enviam produtos com preços originariamente abaixo do seu custo.
Criou-se um terreno fértil para a narrativa de que produtos baratos, acessíveis à população, seriam o melhor para o País, sem o mínimo de análise das consequências que esta medida causaria. Para fazer frente à essa competição desigual, com os produtos similares fabricados e vendidos no Brasil, bastaria ser dado o mesmo tratamento aos produtos nacionais, zero de imposto interno. Sendo realista, algo impossível de ser concedido pelo governo.
Depois de muitas reuniões com o governo federal, com o Legislativo e até com o Judiciário (STF), apresentando estudos, estatísticas e demonstrações da eliminação de milhares de empresas e empregos, conseguiu-se o primeiro passo, a aprovação no Confaz do ICMS modal de 17% (padrão para todos os estados) a ser aplicado nas importações de pequenos volumes via cross-border. Um avanço muito pequeno, se compararmos com a carga tributária nacional de 109,9%, mas um passo muito importante.
A esta altura, entramos em 2024 com muitas promessas de que a questão seria resolvida, mas nada de efetivo acontecia. Mas acontecia sim, as importações via plataformas eletrônicas estrangeiras chegavam a R$ 50 bilhões em 2023 e a uma renúncia fiscal de mais de R$ 30 bilhões de imposto de importação.
Esse breve histórico é importante para se dar a dimensão do assunto e mostrar as inúmeras tentativas de eliminar a falta de isonomia tributária e de equidade concorrencial apenas por meio do Poder Executivo.
Chegamos ao incrível cenário em que todos os steakholders, público e privado, concordaram que a situação ficou insustentável e necessitava ser corrigida; claro, exceto as plataformas eletrônicas, principalmente as asiáticas.
Eis que surgiu a oportunidade de corrigir parte da discrepância tributária por meio do PL 914/24, do projeto Mover, artigo 50, parágrafos 2º e 2º A, muito bem adicionados ao projeto.
A tramitação do PL 914/24 exigiu muita articulação, inicialmente na Câmara dos Deputados, percorrendo um sem-número de gabinetes de deputados, apresentando argumentos incontestáveis e contando com o inestimável apoio do deputado Átila Lira, relator do PL, e do presidente da Câmara, Arthur Lira.
A esta altura, o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, virou um defensor do retorno do imposto de importação. O PL foi aprovado na Câmara por voto de liderança, no qual os líderes concordaram com o retorno do imposto de importação de apenas 20%, insuficiente para fazer frente à falta de isonomia tributária, uma vez que, composto com o ICMS, ficou no acumulado apenas o total de 44,6% de imposto, muito distante dos 109,9% a que somos submetidos. Porém, foi o possível naquele momento.
Aprovado, o PL seguiu para o Senado Federal. Esperávamos uma tramitação menos tensa, afinal, todo o Legislativo já tinha conhecimento dos danos que a falta de imposto de importação tem causado, gerando a eliminação de empresas e empregos, em especial as de médio e pequeno portes, com enormes dificuldades de competir em um setor no qual a indústria e o varejo são responsáveis por mais de 18 milhões de empregos.
No Senado, como dito, era esperado uma tramitação mais calma. As informações eram de que o relator, senador Rodrigo Cunha, que recebeu todos os estudos do IDV e de outras associações, teria compreendido a necessidade da aprovação do imposto de importação de 20% (diga-se de passagem, diminuto). Mas fomos surpreendidos negativamente pelo senador Rodrigo Cunha, que destacou do projeto o artigo 50 que tratava do imposto de importação. E mais, publicamente, declarou que não deveria ser aprovado.
Novamente, muitas negociações, apresentações e explicações foram necessárias para algo que, quando demonstrado, dificilmente era refutado: o imposto de importação é necessário para a manutenção das empresas e empregos, em suma, para a economia do País.
Infelizmente, não se conseguiu demover o senador Rodrigo Cunha da sua posição. Difícil aceitar os seus motivos e não se entendeu o porquê, mas contamos com o apoio de outras dezenas de senadores, em especial, do Rodrigo Pacheco, presidente do Senado Federal, que conduziu a aprovação do PL 914/24, pensando, antes de tudo, na sobrevivência das empresas, na manutenção dos empregos e no progresso do Brasil.
Assim, justificamos o que foi mencionado no início deste artigo. Foram semanas tensas, nas quais, até o momento, venceu a consciência nacional para se ter de volta a equidade concorrencial, que, embora ainda distante, foi um progresso para uma competição mais justa.
Estamos contando com a sanção do presidente Lula, que, certamente, acompanhou todos os movimentos do Legislativo e de toda a sociedade civil para sacramentar este importante passo: 20% de imposto de importação para diminuir parte da tensão que ronda este assunto desde que o imposto de importação foi zerado na introdução do programa Remessa Conforme.
Jorge Gonçalves Filho é presidente do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV).
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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