Em meio a um cenário global incerto influenciado por instabilidades político-econômicas e mudanças comportamentais profundas, um fator vem se destacando como vetor de transformação: a Inteligência Artificial (IA). Não por acaso, ela tem sido apontada como a grande virada tecnológica que promete mudar a forma como vivemos e fazemos negócios, como apontado recentemente por Bill Gates. A grande dúvida atual não é se a IA vai revolucionar nosso mercado ou não, mas sim como isso vai acontecer.
A sensação de falta de clareza é generalizada. Muitos líderes enxergam o potencial da IA, mas ainda não conseguem visualizar, na prática, como essa transformação vai se concretizar. Em parte isso se deve à própria velocidade de transformação dessa indústria – vide o que vimos no recente episódio da Deepseek.
Automação não é Inteligência Artificial
É importante deixar claro: automação e IA são coisas diferentes. Enquanto a automação trabalha com regras pré-definidas e executa tarefas repetitivas, a IA é capaz de aprender, raciocinar e tomar decisões com base em dados. Ela opera em ambientes incertos, reage a imprevistos e melhora com a experiência. Se pudermos fazer uma analogia, a automação seria como um trem sem condutor que segue trilhos fixos, enquanto a IA se assemelha mais a um carro autônomo dirigindo sozinho em ambientes não controlados, como as ruas de uma grande cidade.
É preciso ficar atendo, pois temos visto muitas soluções de mercado que são propagandeadas como IA, mas que, na verdade, são processos de automação que não exploram o verdadeiro poder transformador dessa nova tecnologia.
IA generativa x IA preditiva
Outro ponto crucial é a diferenciação entre IA generativa e IA preditiva. A primeira, representada por modelos como o ChatGPT, impressiona por sua capacidade de gerar textos, imagens e simulações. É o lado “divertido” da IA, aquele que atrai atenção, mas que ainda tem aplicação limitada no dia a dia operacional das empresas.
Já a IA preditiva chama menos a atenção, porém, é mais pragmática e efetiva. Com base em históricos de dados, ela faz previsões e recomendações que podem reduzir custos, aumentar receitas e dar mais precisão às decisões de negócio. Essa, sim, tem sido aplicada, de forma crescente, em empresas de consumo e varejo. Exploro esse tama em maior profundidade nesse artigo.
Case Kroger + Nvidia
Um dos exemplos mais concretos dessa transformação vem do varejo alimentar norte-americano. A Kroger, uma das maiores redes do setor, criou réplicas digitais de suas lojas físicas (gêmeos digitais). Esses modelos virtuais recebem dados históricos, imagens de câmeras, sensores e informações em tempo real. A partir daí, a empresa consegue simular cenários e testar decisões de negócio com altíssimo grau de acurácia.
É possível, por exemplo, avaliar o impacto de substituir caixas tradicionais por totens de autoatendimento, ou identificar a melhor alocação de funcionários em diferentes horários e dias da semana. Com isso, a tomada de decisão deixa de ser apenas baseada em histórico ou feeling e passa a ser orientada por dados e simulações.
Essa abordagem também pode ser levada para centros de distribuição, análises de precificação, planogramas e até estratégias de sortimento. A IA cria um ambiente onde testar é mais barato, rápido e seguro.
IA como novo Excel
Na prática, estamos diante de uma nova infraestrutura de trabalho. Assim como o Excel, nas décadas de 1990 e 2000, mudou para sempre a forma como as empresas tomavam decisões, a IA deve assumir esse papel nas próximas décadas. O planejamento de sortimento, políticas de preço, gestão de estoque e previsão de demanda terão como base ferramentas suportadas por IA.
Antes da digitalização, era comum que varejistas tomassem decisões com base em análises pontuais e intuitivas. Imagine tomar a decisão de um sortimento sem Excel? Com as ferramentas atuais, já temos um grau maior de previsibilidade, e a IA deverá elevar as tomadas de decisão para um novo patamar: além de prever, vamos simular, testar e aprender continuamente.
O desafio é começar
Apesar de toda essa potência, ainda são poucas as empresas que incorporaram IA de forma estruturada em suas rotinas. Muitas estão presas ao hype da IA generativa, enquanto outras ainda não encontraram uma aplicação que justifique o investimento.
Como reforçado pela Azita Martin, VP de Varejo da Nvidia, em sua palestra na NRF 2025, maior evento de consumo e varejo do mundo, o segredo está em escolher um problema real do negócio, definir KPIs claros de sucesso e começar. Ajustar ao longo do caminho faz parte do processo, mas o importante é se mover. Nas palavras dela, assim como aconteceu com o e-commerce, quem sair na frente terá vantagem competitiva difícil de ser alcançada depois.
Eduardo Yamashita é COO da Gouvêa Ecosystem.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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