Erguendo-se da vastidão desolada do grande deserto de sal que separa a Índia do Paquistão está um canteiro de obras que pode se tornar o maior projeto de energia renovável do mundo quando for concluído, daqui a três anos.
O projeto de energia solar e eólica será tão grande que poderá ser visto do espaço, segundo os responsáveis pelo empreendimento que é chamado parque de energia renovável Khavda, em homenagem ao vilarejo mais próximo do local.
No canteiro de obras, milhares de trabalhadores instalam pilares sobre os quais serão montados painéis solares. Os pilares se erguem como cactos de concreto perfeitamente alinhados, que se estendem até onde a vista alcança. Outros trabalhadores constroem as fundações para instalação de enormes turbinas eólicas; também transportam material de construção, constroem subestações e instalam quilômetros de fios.
Quando o projeto for concluído, terá o tamanho aproximado de Singapura, estendendo-se por mais de 726km². O governo indiano estima que seu custo será de pelo menos US$ 2,26 bilhões (11,1 bilhões de reais).
A mudança para as energias renováveis é uma questão fundamental na conferência climática COP28, agora em curso. Algumas lideranças já manifestaram seu apoio à meta de triplicar as energias renováveis em todo o mundo em qualquer acordo final, ao mesmo tempo que reduzem o uso de carvão, petróleo e gás natural, que despejam na atmosfera gases que aquecem o planeta.
O que torna essa atividade industrial intensa tão peculiar é o fato de estar acontecendo bem no meio do Rann de Kutch, no estado de Guajarat, no oeste da Índia. O Rann é um implacável deserto de sal e sapal que está a pelo menos 70 quilômetros de distância da habitação humana mais próxima, mas a apenas uma viagem curta em caminhão do exército de uma das mais tensas fronteiras internacionais do mundo, que separa dois países do Sul da Ásia.
Marco zero da transição de energia limpa da Índia
Quando a Associated Press visitou o parque de energia renovável, dois dias de fortes chuvas fora de época deixaram o solo lamacento e a água empoçada, uma vez que o único escoamento para a água nesse terreno acidentado é a evaporação. Isso dificultou ainda mais a situação para os trabalhadores.
Apesar das condições desfavoráveis, cerca de 4.000 trabalhadores e 500 engenheiros estão vivendo em acampamentos improvisados há quase um ano, trabalhando arduamente para colocar o projeto em funcionamento.
Uma vez concluído, ele fornecerá anualmente 30 gigawatts de energia renovável, suficiente para atender quase 18 milhões de residências indianas. No ano passado, o Brasil alcançou 22 GW.
Considerando que a Índia pretende instalar 500 gigawatts de energia limpa até o fim da década e zerar as emissões líquidas até 2070, este projeto deve contribuir significativamente para a transição do país mais populoso do mundo rumo à produção de energia a partir de fontes não emissoras de carbono.
Na situação atual, a Índia ainda depende principalmente dos combustíveis fósseis, em especial o carvão, que geram mais de 70% da eletricidade do país. As energias limpas respondem atualmente por cerca de 10% das necessidades energéticas da Índia. O país também é atualmente o terceiro maior emissor de gases do aquecimento global, atrás da China e dos Estados Unidos.
“Há pessoas da Índia inteira trabalhando aqui”, diz KSRK Verma, diretor de projeto na Adani Green Energy Limited, o braço de energias renováveis do Grupo Adani, que foi contratado pelo governo indiano para construir 20 gigawatts do projeto. Verma, que tem mais de 35 anos de experiência construindo represas em turbulentos rios do Sul da Ásia e imensos tanques de gás natural sob o Golfo de Bengala, diz que este é um dos projetos mais difíceis que já assumiu.
“Não é nem de longe (um) local fácil de trabalhar, não há moradias, o terreno é pantanoso, há muitos ventos fortes, chuvas, e essa é uma região altamente propensa a terremotos”, diz Vneet Jaain, diretor administrativo da Adani Green em sua sede, na cidade de Ahmedabad.
Jaain, que supervisionou inúmeros projetos ambiciosos para o Grupo Adani, conta que os primeiros seis meses foram gastos apenas construindo infraestrutura básica. “Foi a partir de abril deste ano que começamos a trabalhar no projeto propriamente dito”, acrescenta.
O Grupo Adani tem estado no centro das atenções este ano, desde que a Hindenburg Research, empresa americana de pesquisa financeira com foco em vendas a descoberto, acusou o Grupo e seu presidente, Gautam Adani, de “manipulação descarada de ações” e “fraude contábil”. O Grupo Adani considerou as acusações infundadas.
Jaain, da Adani Green, diz que as acusações tiveram pouco impacto sobre seus projetos em curso, que incluem o trabalho no parque de energia renovável Khavda.
Um exemplo a seguir
“Vinte anos atrás, a Índia estava exatamente no mesmo lugar que uma grande extensão do mundo em desenvolvimento”, diz Ajay Mathur, diretor-geral da Aliança Solar Internacional, sobre a produção de energias renováveis no país. A aliança tem 120 países-membros e promove as energias renováveis, principalmente a solar, em todo o mundo.
A cerca de 200 quilômetros dali, na cidade industrial de Mundra, também situada ao longo da costa do estado de Gujarat, o Grupo Adani está fabricando as peças de energia solar e eólica necessárias ao projeto. É um dos poucos lugares na Índia onde a maioria dos componentes de energia solar são feitos a partir do zero. Algumas das fábricas funcionam como laboratórios, com equipamentos de proteção, máscaras faciais e capacetes, para evitar as partículas de poeira que podem danificar as células solares.
A fábrica vizinha, de energia eólica, pretende produzir 300 turbinas por ano, com cada pá medindo aproximadamente 79 metros e pesando 22 toneladas. Cada turbina eólica é capaz de produzir 5,2 megawatts de energia limpa. Essas serão as maiores da Índia.
Segundo Mathur, da Aliança Solar, “a Índia percorreu um longo caminho”, e seus projetos de energia renovável de grande escala, como o parque Khavda, servirão de inspiração para outros países em desenvolvimento. “Este é um país que estava exatamente onde eles estão hoje, e conseguiu fazer a mudança”, diz.
Impacto ambiental
Embora reconheçam a importância da transição para energias renováveis, os especialistas ambientais e ativistas sociais dizem que a decisão da Índia de autorizar projetos de energia limpa sem exigir avaliações de impacto ambiental certamente terá consequências prejudiciais.
“O deserto de sal é uma paisagem única”, que é “rica em flora e fauna”, incluindo flamingos, raposas do deserto e espécies de aves migratórias que voam da Europa e da África para passar o inverno nesta região, segundo Abi T Vanak, cientista da conservação do Ashoka Trust para Pesquisa em Ecologia e Meio Ambiente, com sede em Bengaluru. Vanak já supervisionou vários projetos de pesquisa relacionados ao meio ambiente na região de Kutch.
Kutch e outras regiões semelhantes são classificadas como “terras devastadas” pelo governo indiano, e Vanak considera que isso é lamentável. “Elas não são reconhecidas como ecossistemas válidos”, diz.
Se os projetos de energias renováveis estão dispensados das avaliações de impacto ambiental, “não existe nenhum sistema” para determinar os melhores lugares para eles, segundo Sandip Virmani, ambientalista que vive em Kutch.
Com pouco mais de 45 mil quilômetros quadrados, o distrito de Kutch é do tamanho da Dinamarca, e é o maior distrito da Índia. Apesar disso, Virmani diz que há terras suficientes em Kutch para vários projetos de energia renovável. Ele teme, porém, que fabricantes de laticínios e outras empresas locais da região possam sofrer impactos dos projetos de grande escala. “É preciso estar em um contexto de não prejudicar outra economia”, diz.
Enquanto isso, os moradores antigos ainda esperam para ver como esse enorme projeto perto de seu vilarejo irá afetá-los.
Hirelal Rajde, de 75 anos, que passou a maior parte da vida em Khavda, está atento ao projeto energético e também ao aumento do turismo nos últimos anos nesta região desolada. “Acho que esses empreendimentos são ao mesmo tempo bons e ruins”, diz Rajde.
“Penso que, no geral, isso irá beneficiar mais do que causar problemas”, explica. “Digo a todos que moram aqui para manterem suas terras, não as venderem. Em poucos anos, digo a eles que terão tantos negócios que não conseguirão nem dormir à noite.”
Com informações de Estadão Conteúdo (AP)
Imagem: Shutterstock