“Fazer o bem sem olhar a quem” é uma daquelas expressões que ouvimos desde sempre. E a intenção, geralmente, é boas ações devem ser direcionadas a todas as pessoas, sem distinções ou preconceitos. Isso seria ótimo se vivêssemos em um mundo socialmente equilibrado. Mas não vivemos. A realidade brasileira, mais especificamente, é marcada por uma profunda desigualdade, que é um legado da colonização europeia. Então, se você pensar de novo, é preciso, sim, praticar o bem, mas olhando a quem. E de olhos bem abertos para tentar reparar danos, redistribuir recursos e evitar reproduzir na filantropia as mazelas de uma lógica colonizadora.
Esse é o princípio da decolonização da filantropia, um pensamento que vem ganhando relevância nos debates sobre a cultura de doação. A ideia é construir uma nova forma de doar, que não seja elitista, racista, homofóbica e machista. Uma filantropia que redistribua recursos e busque a restauração do equilíbrio social. O tema já transborda a bolha da academia e chega às organizações, motivando pesquisas e incomodando os CEOs mais engajados com as práticas de impacto social.
No último mês de março, o assunto ganhou destaque na pesquisa “Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil”, realizada pela Iniciativa Pipa em parceria com o Instituto Nu. O levantamento mapeou mais de 1.000 organizações periféricas de impacto social no País e mostrou onde a filantropia não chega.
Fica claro no estudo que a maior parte dessas iniciativas é liderada por mulheres negras, que também são periféricas, têm tripla jornada e promovem a transformação em suas comunidades com menos de R$ 5 mil por ano.
Como fazer o dinheiro chegar a todos, então? E como o varejo, com toda a sua potência e capilaridade, pode contribuir para uma filantropia decolonizada? As respostas para essas perguntas não são simples, mas há alguns princípios que podem ajudar a liderança a começar essa conversa:
Conheça e reconheça o legado histórico
Entender que a sociedade é desigual por conta de um processo de acumulação de riqueza e que isso é um legado de um processo violento e doloroso de colonização é o começo. Mas para ter pensamento e atitude decoloniais é preciso reconhecer que há um desequilíbrio nas relações de poder e que isso pode reverberar em qualquer lugar, inclusive na forma como se doa.
Olhe para as margens: a transformação já acontece lá
Historicamente, a população negra e periférica sempre cuidou dos seus como um ato de resistência. O estudo da Iniciativa Pipa lembra isso, citando as irmandades religiosas negras, como as Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, no Rio de Janeiro.
E hoje não é diferente, como a mesma pesquisa mostrou: centenas de coletivos periféricos promovem a transformação com pouca ou quase nenhuma ajuda. As ações de impacto já acontecem às margens das grandes metrópoles e dos círculos de poder e precisam de visibilidade e fomento.
Use o poder da proximidade
Para impactar positivamente uma comunidade é preciso mais do que estudar sobre ela e suas necessidades. Em seu livro “Decolonizing Wealth”, Edgar Villanueva afirma que o conhecimento profundo sobre a realidade de uma população não se obtém pela leitura de relatórios e nem mesmo em uma visita local.
É preciso estar dentro dessa comunidade e experimentar na pele suas vivências. Esse é o poder da proximidade: a cabeça pensa onde o pé pisa. E como fazer isso? Trazendo justamente essa população para pensar e executar as ações que vão beneficiá-las.
Não ignore o sentimento de desconforto
Falar sobre a colonialidade do poder pode gerar desconforto. E é importante que gere: ninguém gosta de pensar nas mazelas geradas pela concentração de riquezas. Essas conversas precisam continuar acontecendo até que o desconforto se transforme em ação e ocorra o chamado giro decolonial, que é uma virada mesmo, uma transformação de ponta-cabeça na forma como pensamos e agimos em relação ao outro.
Teste-rápido de colonialidade
Um dos principais nomes do pensamento decolonial, o sociólogo Aníbal Quijano mapeou sete aspectos coloniais que ajudaram a criar um padrão mundial de poder. A partir dessa contribuição, qualquer organização pode avaliar suas próprias ações e refletir se sua forma de doar precisa de uma transformação. Seguindo os aspectos mapeados por Quijano, deve-se questionar se suas ações seguem um padrão que é eurocêntrico, capitalista, cristão, machista, racista e homofóbico.
E esse é realmente só o início, um impulso para o giro decolonial. Pensar em uma filantropia mais diversa, inclusiva e justa é pensar em uma revolução a partir da rotina, uma verdadeira metamorfose de micropensamentos, de costumes despretensiosos, de sentimentos e intenções. Esse é um processo profundo, complexo e longo. E é por isso que já estamos atrasados – há pelo menos 500 anos – para começar essa conversa.
Roberta Faria e Rodrigo Pipponzi são cofundadores do Grupo MOL, ecossistema de negócios sociais que promove a cultura de doação.
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