Os dados recentes do comportamento do consumo, do varejo e da própria economia surpreendem, mas são explicados pelo crescimento da renda real, da massa salarial, pela queda do desemprego, pelo aumento do crédito às pessoas físicas e pelo crescimento do nível de confiança. Esse é o lado positivo.
O negativo é o impacto já configurado na inflação obrigando a elevação das taxas de juros. Até aí tudo sob controle e poderia ser mais um capítulo da Porta da Esperança (antigo quadro do dominical Programa Silvio Santos).
A perspectiva dos próximos dois anos está encaminhada e envolve, como no passado não muito distante, o impulso artificial ao consumo pelo aumento do crédito, estímulos diversos incluindo o Bolsa Família e o papel do Estado como indutor maior do crescimento impulsionando a confiança do consumidor-cidadão.
Tudo isso na clara expectativa de que esse astral seja decisivo nas eleições presidenciais de 2026, depois dos resultados negativos constatados nas eleições municipais deste ano. É outra edição de Vale Tudo (novela lançada no final dos anos 1980 e que contará com um remake em 2025).
É nesse cenário que as empresas dos mais diversos setores estão concluindo suas revisões estratégicas para o período 2025-2030, repensando planos de ação e concluindo orçamentos para o próximo ano com foco na realidade dos segmentos em que atuam.
O que poucos fazem é pensar o Projeto Estratégico da Nação num momento especialmente crítico no cenário global e com perspectivas tão voláteis nos planos político, econômico, militar e tecnológico reconfigurados pela Inteligência Artificial.
E esse poderia ser mais um capítulo da novela Explode Coração.
Os números melhores do que as previsões que envolvem o desempenho da economia e do varejo e consumo são resultado do comportamento de alguns fatores com impacto direto no comportamento dos consumidores.
1. Melhoria da renda e da massa salarial.
A massa salarial teve aumento real de 20,2% no período de 2014 a 2024 atingindo o total de R$ 326,2 bilhões, o maior da série histórica. Nesse número deve ser adicionado R$ 13,2 bilhões que representa o montante total distribuído pelo Auxílio Brasil/Bolsa Família. É do crescimento dessa massa que vem boa parte do crescimento do consumo.
O rendimento médio real individual atual de R$ 3.228 é o maior já alcançado, com uma evolução real de 6,1% no período de dez anos. Esse aumento tem sido impactado também pela falta de empregados qualificados pela reconfiguração do próprio emprego e pelo crescimento do contingente de MEIs, os microempreendedores individuais.
O número atual de MEIs se aproxima dos 15 milhões e, como referência, eram 4,1 milhões em 2014.
2. Impacto dos auxílios e Bolsa Família
Com todos seus aspectos positivos os programas de Bolsa Família/Auxílio Brasil fazem parte da equação da melhoria do consumo.
Em 2020 eram 14,3 milhões de famílias beneficiadas e atualmente são 21,8 milhões, um aumento de 52,5% em quatro anos.
Em 2022 o valor mensal dos auxílios Emergencial e Brasil estava em R$ 3,8 bilhões e atualmente esse número no novo Bolsa Família saltou para R$ 13,2 bilhões mensais, com um crescimento de 247% em dois anos. Ainda que parte disso seja direcionado para Bets, tudo indica deve ser mantido ou até aumentar.
3. Redução do Desemprego
O atual nível de desemprego de 6,6% repete o patamar atingido em 2013/14.
Vale lembrar que a metodologia de cálculo do índice de desemprego considera apenas aqueles que estão procurando emprego e, portanto, os dependentes do Auxílio Brasil/Bolsa Família e os MEIs, por não estarem procurando emprego em sua absoluta maioria, não são considerados desempregados para efeitos do índice. E isso contribui de forma artificial para o atual número.
Nesse conceito o índice do presente não pode ser comparado de forma equivalente com o alcançado há dez anos, quando os números de MEIs e beneficiados pelos programas de auxílio eram significativamente diferentes.
4. Aumento da oferta e da tomada de crédito das pessoas físicas
O atual saldo da carteira de crédito para pessoas físicas de R$ 3,7 trilhões teve forte aceleração e crescimento de 172% ao longo dos últimos dez anos. Em 2014 esse saldo era de R$ 1,4 bilhões.
Com isso houve também expansão do endividamento das famílias com natural impacto na inadimplência.
O nível de endividamento das famílias incluindo as habitacionais em relação à massa salarial dos últimos 12 meses está em 47,5% e mostra leve tendência de declínio depois de atingido seu pico no primeiro semestre de 2022. Em 2006 esse nível era de 21,7%.
Excluído o endividamento habitacional o nível atual em relação à massa salarial dos últimos 12 meses é 29,75% que se compara com 18,8% também em 2006.
Em termos de inadimplência das pessoas físicas nas suas mais diversas modalidades pelos dados do Banco Central o nível atual é de 5,5% para atrasos acima de 90 dias e mostra também leve tendência de queda. Pode ser comparado, nas mesmas bases, com 6,1% em agosto de 2023 ou 5,7% há dez em 2014.
5. Melhoria do nível de confiança
O conjunto desses fatores tem impacto positivo na confiança dos consumidores, que estava no patamar de 93,7% no mês de setembro passado e com leve tendência de melhoria nos últimos meses sendo mais impactada pela expectativa futura do que a realidade do presente.
Como referência o seu maior índice mais recente foi no início de 2019 com 95,6% e seu mais baixo em maio de 2020 com 58,2%, no pico do começo da pandemia.
O momento do juízo. Ou da falta dele
O quadro geral sinaliza a perspectiva de melhoria dos indicadores de desempenho do varejo e consumo pelo conjunto de elementos que tenderão a continuar evoluindo, em especial pelos programas de incentivos e estímulos emulados por um Estado investidor. Principalmente no plano social e com o evidente propósito de capitalizar conquistas no plano político. E pelo aumento de funcionários e salários no funcionalismo público.
A questão é que o foco da melhoria de curto prazo está sendo transposto por indicadores fundamentais da visão estratégica e deixando de dedicar atenção às mudanças realmente estruturais que o país demanda. Comprometendo assim o futuro pelas benesses políticas de curto e médio prazo.
Mais preocupante ainda é que o maior compromisso está na obsessão com a reeleição, problema que assola o país em todas as esferas e que estaria mais do que na hora de ser extinto como opção numa necessária e fundamental reforma política.
Vale a reflexão. Em especial no momento de repensar o estratégico de mais longo prazo.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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