A publicação da Portaria nº 3.665/2023, em dezembro de 2023, com entrada em vigor em 1º de julho de 2025, representa uma das mais expressivas alterações no ordenamento jurídico-trabalhista brasileiro dos últimos anos. A norma revoga autorizações genéricas anteriores e torna obrigatória a negociação coletiva — via acordo ou convenção — para que as empresas possam convocar empregados ao trabalho aos domingos e feriados.
Muito além de uma simples alteração infralegal, a portaria redefine a lógica do funcionamento do setor varejista em datas tradicionalmente cruciais, como feriados prolongados, Natal e Black Friday, tornando a negociação com sindicatos imperativa. Este artigo visa oferecer uma visão completa, técnica e prática sobre o tema, reunindo os principais pontos jurídicos, operacionais e estratégicos.
Contexto e fundamento jurídico
A Portaria foi editada com o objetivo de harmonizar o ordenamento infralegal com o que dispõem as Leis nº 10.101/2000 e nº 11.603/2007. Ambas exigem expressamente a autorização por convenção coletiva para o trabalho em domingos e feriados, sendo inválido o amparo apenas em contrato individual ou em normas administrativas genéricas.
A norma revoga dispositivos da antiga Portaria MTP nº 671/2021, que autorizava o trabalho em feriados com base em acordos individuais, prática considerada inconstitucional e objeto de judicialização.
Além disso, a medida busca reforçar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho e da promoção do bem-estar físico, mental e familiar dos trabalhadores, inserindo o Brasil em uma tendência internacional de regulação colaborativa do tempo de trabalho.
Principais mudanças trazidas pela portaria
- Negociação coletiva obrigatória: Só será lícito o trabalho aos domingos e feriados se houver acordo coletivo de trabalho (ACT) ou convenção coletiva de trabalho (CCT), firmado com o sindicato da categoria profissional.
- Fim das autorizações permanentes: Setores que antes possuíam autorização automática, como supermercados, farmácias e comércio de rua, não poderão mais operar nessas datas sem negociação prévia com o sindicato.
- Revogação de autorizações anteriores: Toda e qualquer autorização concedida de forma genérica e unilateral perderá validade a partir de julho de 2025, mesmo que praticada de forma habitual pela empresa.
- Equiparação de feriados civis e religiosos: Todos os feriados exigem negociação coletiva, sem distinção.
- Validade limitada dos contratos individuais: Cláusulas nos contratos individuais de trabalho que prevejam labor aos domingos ou feriados não prevalecerão na ausência de acordo coletivo.
Exceções previstas em lei
A portaria respeita a legislação já vigente sobre atividades essenciais, como:
- Serviços de saúde, segurança pública, hotelaria, alimentação e turismo;
- Estabelecimentos como bares, restaurantes, padarias, postos de combustíveis e feiras livres;
- Atividades específicas como a venda de pães, flores e artigos de uso imediato.
Para esses segmentos, não há necessidade de CCT ou ACT específicos para operar aos feriados e domingos, salvo se a legislação municipal dispuser em sentido diverso.
Impactos práticos para o varejo
Empresas de diversos setores enfrentarão transformações profundas:
- Riscos jurídicos e fiscais Fiscalizações do MTE poderão resultar em multas, interdições administrativas e ações trabalhistas, incluindo pedidos de pagamento em dobro das horas trabalhadas; indenização por danos morais coletivos; e reconhecimento de vínculo irregular.
- Revisão de contratos e escalas: Contratos de trabalho, políticas internas, manuais e sistemas de escala devem ser revistos para garantir conformidade com a nova exigência.
- Aumento de custos operacionais: Acordos coletivos costumam envolver contrapartidas financeiras, como adicionais superiores ao piso legal, folgas compensatórias; limites de jornada; e pagamento de taxas sindicais (muitas vezes questionadas).
- Dependência da relação sindical: Empresas terão que restabelecer o diálogo com sindicatos, inclusive aquelas que romperam ou nunca construíram tal relação institucional.
- Insegurança jurídica: A portaria é alvo de 16 projetos de decreto legislativo que buscam sua revogação. Enquanto isso, empresas devem cumprir a norma vigente, sem ignorar a possibilidade de mudanças futuras.
Questões municipais e interpretações divergentes
A portaria não afasta a necessidade de respeito à legislação municipal, especialmente no que diz respeito ao funcionamento do comércio aos domingos e feriados. Isso cria um quadro complexo, pois:
- Algumas cidades autorizam o funcionamento sem acordo coletivo (exemplo: Curitiba);
- Outras condicionam a um licenciamento específico;
- Há interpretações divergentes entre sindicatos, federações e operadores do direito.
A recomendação é que empresas avaliem a legislação local em conjunto com sua assessoria jurídica, a fim de mitigar riscos.
A posição dos sindicatos e a polêmica das taxas
Desde a Reforma Trabalhista de 2017, os sindicatos tiveram redução de até 98% em sua arrecadação, o que gerou:
- Enfraquecimento da estrutura sindical;
- Tendência crescente de cobrança de taxas assistenciais como condição para firmar acordos;
- Aumento do custo para os empresários e possível judicialização dessas cobranças.
Por outro lado, a obrigatoriedade de negociação coletiva poderá revitalizar o papel dos sindicatos, fortalecendo um canal institucional legítimo de negociação.
Recomendações estratégicas para os empresários
Benefícios potenciais da nova portaria
Apesar dos desafios, a Portaria nº 3.665/2023 também traz oportunidades:
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Segurança jurídica reforçada: redução de litígios e passivos trabalhistas;
Fortalecimento do diálogo institucional: relações sindicais mais transparentes;
Melhoria da imagem institucional: empresas comprometidas com a legalidade e o bem-estar dos trabalhadores ganham respeito de consumidores e investidores;
Aumento da produtividade e do engajamento: jornadas equilibradas favorecem a saúde mental e a motivação das equipes.
Conclusão: adaptar-se é fundamental
A Portaria nº 3.665/2023 não deve ser vista como um entrave, mas como um divisor de águas. Trata-se de um reposicionamento do direito do trabalho brasileiro, em direção a um modelo que valoriza a negociação, o equilíbrio e o respeito mútuo entre capital e trabalho.
Empresas que se anteciparem, planejarem e negociarem de forma estruturada não apenas estarão em conformidade com a legislação, mas também poderão colher benefícios econômicos, reputacionais e estratégicos a longo prazo.
Como diz o velho ditado da boa prática jurídica: “Mais vale um bom acordo hoje do que uma ação trabalhista amanhã.”
E, no varejo, onde o tempo vale ouro, agir com estratégia é sempre o melhor investimento.
Valéria Toriyama e Ana Paula Caseiro Camargo são advogadas do Caseiro e Camargo Advocacia Estratégica.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagem: Envato