A digitalização era o plano “Z” das empresas: algo necessário, mas que estava na gaveta guardado para ser colocado em prática num futuro próximo. Nos últimos meses, no entanto, a realidade se impôs, e a transformação dos negócios por meio da tecnologia deixou de ser um “side business” para fazer parte do “main business”. O plano “Z” virou plano “A”.
O tema foi tratado em entrevista do presidente da multinacional brasileira de tecnologia VTEX, Rafael Forte, ao portal Mercado&Consumo. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa.
Mercado&Consumo: As empresas que ainda não estavam digitalizadas tiveram de fazer isso do ano passado para cá. Como é o processo de digitalizar uma empresa do dia para a noite, como ocorreu com muitas nesta pandemia?
Rafael Forte: A primeira coisa que ocorreu é que, com o fechamento de lojas físicas, ficou muito evidente, principalmente para os varejistas, o quanto eles tinham de diversificar o negócio. É como quando você é investidor de bolsa. Você não coloca seu dinheiro em uma só ação. Você tem de colocar em várias, porque, se um dia uma cai, a outra sobe, e você trabalha na média. Para alguns varejistas, que são muito focados no mundo físico, “caiu a ficha” quando eles fecharam as portas, porque o faturamento caiu 85%, 90%. Ou seja: eles não estavam diversificados. Eram muito dependentes de uma única modalidade. Isso trouxe à tona algo que faz parte do trabalho da VTEX, que é aculturar os nossos clientes e o mercado da importância de diversificar, principalmente por meio do digital.
Muitas dessas empresas sempre trataram o digital como um side business e não como um main business. Só que, quando você fecha todas as suas lojas, o único canal que você tem para vender é o digital. Uma das saídas foi plugar as lojas físicas no digital. Isso foi muito emblemático, porque a gente vinha trabalhando de forma constante no aculturamento dos nossos clientes de que não existe mais diferença entre o on e o off, de que eles precisavam unificar as operações para poder entregar para o consumidor a experiência que ele queria. E aí ficou evidente. A maior dificuldade era justamente convencer, porque fazer a gente faz. A Ri Happy, por exemplo, em questão de duas semanas, estava com todas as suas lojas integradas ao digital. Ela abriu um novo canal, que permite uma série de experiências, como o ship from store, que é usar a loja física como um Centro de Distribuição, e o pick up store.
Outra coisa que surgiu na pandemia e foi muito simples – levou um dia para ser feita na VTEX – foi o social selling, que permite que os vendedores montem os pedidos dos clientes, os carrinhos, e compartilhem via WhatsApp. Criou-se esse hábito de o vendedor trabalhar ativamente em cima da base. Aliás, um dos hábitos que ficaram dessa pandemia é que, hoje, vendedor de loja física não fica mais esperando o cliente entrar. Se ele está na loja sem cliente, pode vender via WhatsApp.
Então, houve algumas transformações que não eram tecnologicamente inovadoras, mas, por necessidade, passaram a ser utilizadas de uma maneira mais abrangente, mais disseminada. Não tinha mais aquela opção: “ou eu coloco dinheiro aqui no plano A ou vou no plano Z, que é o da digitalização”. O plano Z virou o plano A. Era fazer isso ou fechar as portas. Acabou-se aquela era em que você pega um projeto, coloca um Capex [Capital Expenditure, em inglês, ou investimentos em bens de capital] enorme e espera um ano e meio ou dois anos para fazer funcionar. Você tem de pegar um Capex pequenininho e colocar dez iniciativas para rodar. Oito vão dar errado e as duas que derem certo vão dar muito certo e pagar as outras oito. A diferença é que você testa em um mês, não perde tempo e gasta menos dinheiro.
Mercado&Consumo: Mesmo empresas que já estavam no online precisaram aperfeiçoar seus serviços para dar conta do aumento da exigência do consumidor. O que elas precisaram fazer para conseguir escalar o negócio nesse período?
Rafael Forte: Existem diversos pontos que tornam uma experiência omnichannel, e nem todo mundo tem todas elas, então existem muitas oportunidades. O Grupo Soma é um cliente nosso, um case de omnicanalidade bastante consolidado, mas que não estava trabalhando com o vendedor da forma como veio a fazer na pandemia. A C&A é um cliente omni da VTEX que tem as lojas físicas integradas, mas não tinha os vendedores participando dessa jornada, e começou a vender por meio de WhatsApp.
Quem já estava se digitalizando já tinha um planejamento um pouco mais a longo prazo sobre as experiências que ia rodar: ship from store, pick up store, store to store, prateleira infinita, social selling. Elas aceleraram a implantação desses projetos. São empresas que já não consideravam o digital um side business, eles já levavam mais a sério.
Mercado&Consumo: Existe uma visão geral de que a transformação digital tem de ser hoje foco do negócio como um todo e não só da área de TI, por exemplo?
Rafael Forte: A gente ainda está numa geração de transição entre o que pode chamar de tradicional e nova forma de fazer negócio. Até uma década e meia atrás, o departamento de TI era visto como um fornecedor da companhia. Ele não era visto como um parceiro de negócio de diferencial competitivo.
O departamento de TI tradicional, para ganhar poder dentro de organizações, tem de ter budget e time. Para isso, quer construir tudo dentro de casa. No momento em que a empresa faz isso, acaba perdendo o propósito, porque ela é um varejo, é uma indústria, não é uma empresa de tecnologia. Quando se fala em inovação, estamos falando de empresas que começaram a perceber que elas precisam ter tecnologia e evoluir, mas não podem se esquecer do foco do negócio. Muitos CIOs já perceberam que o que vai fazê-lo ter relevância dentro da companhia não é tamanho do time ou do budget, mas evoluir procurando algo que já existe no mercado. Aí o profissional de TI se equipara ao do time de negócio. Ele deixa de ser visto como fornecedor para ser visto como par de negócios. E eles discutem sobre como se tornarem mais efetivos e como fazer a empresa lucrar mais.
Uma questão que a pandemia trouxe foi: como a empresa faz para correr atrás do prejuízo querendo construir dentro de casa todas as soluções? Não dá. Ela precisa ir a mercado para poder reagir rápido. E aí rompe-se mais uma barreira cultural. Acelera-se o amadurecimento dessa geração de transição. O CIO que hoje já tem essa mentalidade provavelmente vai ser o CEO da companhia no futuro, porque ele é o cara que entende de tecnologia e de negócio.
Mercado&Consumo: Qual sua percepção da transformação da loja física por conta da pandemia? A loja física é ambiente de experiência/serviço/pick-up, ou tudo isso junto? Como atrair o cliente para ela?
Rafael Forte: A loja física não vai voltar a ser o que era. Ela não vai ser só o ponto de apoio para e-commerce, mas o e-commerce vai ser o ponto de apoio para a loja física. É tudo a mesma coisa. Tanto o e-commerce quanto a loja física são convenientes para o consumidor dependendo da necessidade dele. Você pode comprar online e buscar numa loja física, comprar numa loja física e pedir para receber em casa como se tivesse comprado online. Você pode, dentro de uma loja física, comprar numa prateleira infinita um produto que nem é daquela loja, que é de um terceiro, que está num marketplace.
Qual o propósito básico do varejo? É ofertar produto e alguém poder comprá-lo. Loja física, e-commerce, televendas, WhatsApp, Instagram, tudo isso são ferramentas que permitem que o propósito básico seja atingido. O entrelaçamento dessas experiências depende da necessidade do consumidor. Ele quer procurar o produto onde? Quer pagar onde? Quer receber ou retirar onde? Houve um desacoplamento da jornada para que ela possa ocorrer da maneira que o consumidor precisa.
Mercado&Consumo: Como vê a consolidação dos marketplaces e o fim da barreira entre as marcas? Quais os riscos e as vantagens disso?
Rafael Forte: É inegável que o marketplace é um canal superimportante e útil para qualquer empresa, principalmente para quem não tem marca e precisa vender. A coisa mais cara na internet é conseguir tráfego e cliente. Os grandes marketplaces são bons porque já têm clientes. Por isso muitas empresas que precisaram se digitalizar na pandemia foram para eles, abriram loja no Mercado Livre, no B2W, por exemplo. O marketplace também é importante porque é complementar a outras estratégias, é mais um canal. Vemos muitos clientes nossos se tornando marketplaces, como C&A e Banco Inter. Assim, as empresas complementam o mix e geram tráfego para dentro de suas lojas.
Mercado&Consumo: Qual a importância, para a empresa, de ela digitalizar o relacionamento que ela tem também com os clientes corporativos, no B2B?
Rafael Forte: É superimportante. O mercado B2B é muito maior em GMV [Gross Merchandise Volume, na sigla em inglês, ou Volume Bruto de Mercadorias] do que o mercado B2C. O cliente grande não vai deixar de ser atendido pelo representante de vendas, mas a característica dessa venda vai mudar. O vendedor vai deixar de tirar pedido para ser mais consultivo. Ele vai ajudar o cliente a usar o sistema para poder fazer os pedidos e vai ter mais tempo para falar de negócio com ele.
Além disso, a indústria vem reinventando o relacionamento com a cadeia de distribuição. Em algumas delas, a relação contratual com o distribuidor mudou, porque ele se tornou mais um broker logístico. Ele não tem de comprar para revender. Ele não tem risco de estoque e a indústria, por outro lado, consegue controlar melhor o preço e acesso a dados que antes não tinha. Tanto é que existem indústrias que viraram varejistas. Elas perderam o medo de concorrer com o varejo. E o varejo se tornou mais um canal de vendas, não “o” canal. Tudo isso reinventou a forma como a gente consome e como a cadeia se relaciona com o consumidor.
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