É uma relação quase que direta: quando aumenta a instabilidade econômico-financeira e cai a confiança do consumidor, crescem no varejo os formatos, canais e conceitos de valor, aqueles que se propõem a vender mais por menos. E não é só no Brasil, como acompanhamos em recente giro por alguns países europeus
Existe em vários mercados do mundo um cenário marcado pela instabilidade gerada por crises políticas, econômicas e, quase sempre, com impacto direto em inflação mais elevada e menor confiança dos consumidores. Pudemos observar esse cenário em visitas recentes a alguns países europeus (Portugal, Itália e Espanha) e também nos Estados Unidos.
E com exceção do cenário de inflação mais alta, em sentido inverso no Brasil, onde está estável com tendência declinante, também temos um quadro similar que acaba por privilegiar os formatos, canais, conceitos e modelos orientados para valor.
Em especial porque temos uma situação onde o elevado nível de endividamento das famílias associado com maiores níveis de inadimplência, heranças ainda presentes da crise da pandemia, criam uma situação de maior cautela.
A combinação da menor confiança, cautela com as perspectivas à frente e com mais informação disponível pela profusão de canais de comunicação e maior oferta de alternativas. Tudo isso contribui para maior grau de racionalidade no processo decisório de compras, impulsionando tudo que signifique maior valor percebido em especial na sua dimensão do preço.
Todos esses elementos geraram o “smart consumer” como foi definido esse comportamento emergente e que foi apresentado no Latam Retail Show deste ano.
Assim os clubes de compra no atacado, cash and carry, hard e soft discounters, outlets, e-commerce e market places crescem em sua participação de vendas nos vários tipos de varejo promovendo uma pressão relevante nos preços e na rentabilidade dos fornecedores de bens e serviços de consumo. E obrigam também outros conceitos a ajustarem suas margens e racionalizarem custos para enfrentar o cenário emergente.
Nos alimentos esse processo beneficia diretamente negócios como Costco, Trader Joe’s, Target, Aldi, Mercadona, Lidl e até mesmo Dia e outros operadores com a mesma proposta.
No Brasil os maiores beneficiados são os atacarejos, tipos de varejo que se multiplicaram tanto em número de unidades e marcas que as vendas individuais já não crescem como cresciam no passado recente, mas tiram mercado e participação dos super e hipermercados convencionais.
A nova polarização do varejo também contempla o vetor de conveniência que tem feito com que mais redes busquem formatos e conceitos que atendam essa demanda.
De forma mais global, no setor da moda mais marcas estão orientadas para essa proposta, como Primark, Zara, H&M, Mango e outras aumentando seu tráfego e crescendo em participação nas vendas, redistribuindo participação de mercado.
No Brasil, considerando todo esse conjunto de fatores o cenário, as características são um pouco distintas pelo peso da informalidade em determinadas categorias de produtos que cria uma concorrência desigual por oferecer preços mais baixos pela menor ou nenhuma taxação.
Em todos os casos o avanço do e-commerce por sua maior facilidade de comparação de preços e análise de alternativas se transformou num elemento importante de pressão sobre os preços e rentabilidade de todos os operadores.
Mas existe uma diferença significativa de práticas com respeito à entrada dos grandes operadores globais de plataformas de produtos de menor preço, em especial os com origem no mercado Asiático.
Enquanto na Europa em muitos países houve um bloqueio à concorrência predatória representada por essas plataformas, no caso do Brasil esse processo tem sido estimulado pelo benefício representado pela não tributação da importação e apenas a imposição do ICMS de 17%.
Essa flagrante e inconcebível desigualdade competitiva tem como “mérito” reduzir emprego, renda e investimentos na indústria e no varejo locais e estimular a abertura de negócios em países vizinhos para que se possa também trazer produtos com esse benefício.
Esse comportamento seria pouco inteligente, ingênuo e míope se não fosse absurdo. Mas não há como ignorar esse movimento de crescimento dos formatos, marcas, canais e conceitos orientados para valor, e sua crescente participação de mercado, e essa relação simbiótica onde a instabilidade econômico-financeira gera aumento dos conceitos de valor que por sua vez deprimem preços e rentabilidade gerando maior instabilidade.
Vale refletir e, mais importante, agir para repensar modelos e processos de varejo que permitam um novo patamar inevitável de concorrência.
Lições do Cotidiano
Aconteceu no aeroporto de Barcelona num domingo de muito movimento. O excesso de bagagem obrigaria o pagamento de um valor extra para despacho de mais uma peça. Mas havia a opção de fazer a compra usando o aplicativo da companhia aérea Vueling ao invés de comprar direto no check-in o que reduziria o valor em 58%.
A Vueling é uma empresa de serviços aéreos orientada para valor, pois opera no conceito de baixo custo e pertence ao grupo IAG, que também opera Iberia, British Airways e Air Lingus, entre outras. É a principal companhia aérea no aeroporto de Barcelona, com 38% de participação.
O funcionário do check-in, nesse caso operado pela Iberia, sinalizou essa possibilidade que traria inegável benefício ao cliente, pois havia tempo para tal e apoiou orientando no uso do aplicativo no celular para que pudesse ser concluída a operação.
Priorizou o benefício ao cliente, colocando-o no centro de tudo, ao invés de aumentar a receita da empresa naquela inevitável transação.
Vale a lição e a inspiração.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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