Não faz muito tempo, especialistas americanos criaram a expressão “Retail Apocalypse” (apocalipse do varejo) para definir o movimento de fechamento de lojas físicas e a transferência das vendas para o online. Durante a pandemia esse processo se intensificou, impulsionado pelo necessário enxugamento das operações. Prova disso é que, em 2020, cerca de 12.200 lojas deixaram de funcionar, apenas nos Estados Unidos, segundo levantamento do CoStar Group, empresa especializada em real estate.
Porém, ao contrário do que muita gente pensa, podemos estar testemunhando não a morte, mas o renascimento das lojas, com outras estruturas e funções. Não é à toa que em 2021 os americanos inauguraram nada menos do que 8.100 lojas, enquanto somente 3.950 eram desativadas. Os dados são do The Daily Retail, plataforma de pesquisa norte-americana. Esse saldo positivo, embora não seja suficiente para compensar as perdas recentes, sinaliza uma clara tendência.
O “Retail Renaissance” (renascimento do varejo) será impulsionado pela necessidade dos varejistas de usar a loja física para novas e múltiplas finalidades. Nós aqui na Gouvêa identificamos esse fenômeno em 2019 e o batizamos de PDX: a loja, mais do que um ponto de venda, torna-se ponto de tudo. Veja aqui algumas dessas funções.
1. Aquisição de clientes
A Amazon, um dos maiores players do e-commerce global, há tempos tem mostrado que sua estratégia passa necessariamente pelo mundo físico. Lançou a Amazon Books, comprou a Whole Foods, investiu na Amazon 4 Stars, e agora anuncia que vai ampliar presença no mundo da moda, também com lojas.
A Amazon Style venderá moda masculina e feminina, calçados e acessórios. A primeira unidade, com cerca de 3.000 m², ficará no Americana at Brand, shopping em Glendale, ali ao lado de Los Angeles. A Amazon Style terá muita tecnologia embarcada, total integração entre loja e app e coleções com curadoria de digital influencers, entre outras novidades. A ideia é ampliar presença e participação de mercado por meio da conquista de novos clientes, menos afeitos a compras de vestuário pela internet. Os pupilos de Jeff Bezos sabem que sem uma loja isso seria bem mais difícil.
2. Captura de dados dos clientes
As estratégias centradas no consumidor exigem que varejistas possuam um profundo conhecimento das características, comportamentos e anseios dos clientes. Por isso, uma função essencial nas novas lojas físicas será capturar informações de diferentes maneiras.
Um bom exemplo é a Nike House of Innovation, onde os clientes são estimulados a baixar o app da marca para conhecer detalhes dos produtos expostos na loja e até avaliações de outras pessoas que compraram determinado produto. Há ainda uma série de serviços disponíveis para quem for Nike Member, tais como encontros com especialistas e acesso prévio aos lançamentos. O que é preciso fazer para ser Nike Member? Apenas um cadastro, listando suas preferências e dando de bandeja para a marca insights preciosos. Em troca dos benefícios, milhões de pessoas estão fazendo exatamente isso.
3. Hub logístico
A integração entre os mundos físico e virtual seguirá na ordem do dia do varejo. Mas os processos logísticos que envolvem o e-commerce são complexos e custosos. Nesse aspecto, estimular o consumidor a utilizar lojas como ponto de retirada e devolução de produtos pode ser essencial. Para empresas como Target, Walmart e a brasileira Magalu, a ampla rede de lojas torna-se uma tremenda vantagem competitiva. Mas o mesmo acontece também com redes orientadas para moda, artigos para o lar e beleza, para citar apenas alguns segmentos.
Em alguns negócios emergentes, como o da venda de produtos de segunda mão, torna-se fundamental contar com uma loja física. A ideia é não apenas facilitar a experimentação de produtos, mas também atuar como ponto de coleta de itens seminovos que os clientes não querem mais e desejam vender.
Uma variação da loja como hub logístico será a proliferação de dark stores e dark kitchens, espaços destinados especificamente para distribuição de produtos comprados online.
5. Espaço de descobertas e mídia
A loja Situ Live não é exatamente um ponto de venda. Localizada no Westfield Londres, ela se define como um “teatro de descobertas para inspirar o seu dia a dia”. O espaço de 750 m² abriga vários “palcos”, abordando diferentes aspectos da vida das pessoas, como sono, exercícios e casa. O objetivo não é fazer vendas, mas apresentar novidades e permitir que os consumidores experimentem produtos antes de comprar. Algo bastante valioso para marcas e fabricantes.
Na mesma linha, a loja da Allure, em NY, expõe produtos de beleza selecionados pelos editores da revista, funcionando como uma espécie de extensão da oferta publicitária do veículo. A diferença é que na Allure é possível comprar o que está exposto na loja.
Tanto a Situ quanto a Allure funcionam como espaço de descobertas para os clientes e como mídia para as marcas, ao mesmo tempo.
6. Engajamento de clientes
Não é de hoje que as lojas oferecem experiências em seus espaços físicos. Mas o tipo de experiências está mudando.
Antes da pandemia a Apple havia lançado seu ambicioso programa “Today at Apple” (Hoje na Apple), com uma ampla programação de eventos. Ali as pessoas encontravam desde palestras e cursos de fotografia a shows de música, tornando a loja um destino de entretenimento, informação e socialização. Isso explica por que a empresa tirou a palavra “store” do nome das lojas. Hoje você não vai mais a uma Apple Store. Vai simplesmente à Apple. Faz todo sentido, não acha?
A Lalo, que vende móveis e produtos para crianças, com uma pegada sustentável, vai na mesma linha. Além de um Play Café, onde as crianças podem brincar à vontade, proporciona treinamento para os pais sobre técnicas para dormir, sessões de massagem e aulas de música para os pequenos.
Já nos Sleep Spas (spas do sono) da rede dinamarquesa Hästens os consumidores podem agendar consultas de uma hora para conversar com os especialistas da loja sobre como dormir melhor. Há ainda classes de yoga, meditação e respiração, tudo para melhorar o padrão de sono dos clientes. O objetivo é aumentar o engajamento das pessoas com as marcas, o que traz maior proximidade e, mais na frente, amplia a fidelidade.
7. Serviços, muito serviços
Em sua palestra na NRF 2022, o consultor Mitch Joel repetiu um mantra que tem usado bastante nos últimos tempos: serviço é a nova experiência. Ele está coberto de razão. A quantidade de marcas que tem investido em serviços cresce a cada dia. E os objetivos podem ser vários.
Para a Camp, que se define como um espaço de experiências familiares, serviços, como oficina de slime, pintura em porcelana e festas de aniversário, representam cerca de 40% das receitas. Os outros 60% ficam com a venda de brinquedos. Os salões de beleza da Ulta Beauty, localizados dentro das lojas, ajudam a atrair público e acabam gerando receita adicional também.
Outra área relevante é a da alimentação. As novas lojas dos supermercados Whole Foods parecem até um foodhall, tantas são as opções de comida disponíveis. Restaurantes dentro das lojas, como o que opera no rooftop da RH – Restoration Hardware são exemplos de como serviços podem gerar fluxo adicional e novas receitas ao mesmo tempo.
Os novos papeis da loja física, obviamente, não excluem a função de expor e vender produtos. Mas ampliam muito as possibilidades e as formas de conquistar e manter clientes. E produzir vendas, claro.
Pensar de maneira mais abrangente nas novas funções da loja física será tarefa fundamental tanto para varejistas quanto para shopping centers, que são espaços ideais para a maior parte desses formatos. Portanto, mãos à obra.
Luiz Alberto Marinho é sócio-diretor da Gouvêa Malls.
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