O Brasil vive uma outra polarização, envolvendo os afluentes, que cada vez têm mais, e os sobreviventes, que cada vez têm menos, muito mais importante por sua perspectiva econômica e social do que a polarização mesquinha e restrita da política atual.
Num processo que repete o passado, os anos recentes fizeram crescer os afluentes, aquela pequena parcela da população que cada vez tem mais recursos, renda, acesso, informação, capacidade de influenciar e que deve ser medida em termos absolutos apenas, número de famílias ou pessoas.
Essas pessoas acumulam cada vez mais poder de compra, usualmente protegidas das variações cambiais ou outras por estruturas de competentes profissionais preparados para antever o futuro próximo e buscar alternativas para redirecionar investimentos e aplicações que assegurem a remuneração positiva em patamares cada vez mais altos.
Na sua condição de afluentes, ou happy few, sofisticam seus gostos e opções pela evolução da sua renda e toda uma economia. O mercado e consumo se desenvolvem para atender esse nicho com categorias, produtos, marcas, serviços, lojas, imóveis, veículos, centros de compra e lazer, restaurantes, viagens, lazer, entretenimento e atenções que geram emprego e renda no âmbito local. São cada vez mais significativos na sua importância econômica; caso contrário, ampliaria ainda mais a parcela desses gastos que seria feita no mercado internacional.
A realidade é que é crescente a oferta de alternativas no mercado local para satisfazer os que já chegaram lá e os ascendentes a esse olimpo do consumo. Isso aumenta a importância econômica dos segmentos chamados de luxo em todos os setores. De fato, cresce sua importância em termos de renda e potencial de consumo.
Mas, infelizmente, tem crescido muito mais o outro extremo dessa polarização, o que envolve os segmentos com cada vez menor renda, acesso e poder aquisitivo individual.
A combinação do pífio crescimento econômico com os danos gerados pela pandemia, o recrudescimento da inflação mais elevada, o alto desemprego e a perda real de renda só fizeram crescer o contingente dos que cada vez menos têm, mas que em períodos eleitorais se tornam fundamentais na definição do cenário político futuro.
Essa maior parcela da população, representada pelas classes C, D, E, teve mudança relevante em sua importância econômica no período de mais forte crescimento do consumo entre 2004 e 2013. Alavancada pelo aumento da renda, do emprego, do crédito e da confiança, numa equação virtuosa, ela proporcionou o maior crescimento dos setores de varejo em praticamente todos os seus segmentos, formatos, canais, categorias e negócios da história recente do País. E não chegou a ser fortemente impactada pela crise financeira global do período 2007 a 2011.
Mais recentemente, a sucessão de equívocos políticos e econômicos locais, a menor expansão do mundo ocidental e as crises internacionais, complementados pelos impactos da pandemia nos últimos dois anos, reduziram o emprego e a renda, encareceram e limitaram o crédito e geraram uma contração generalizada de consumo.
Essa parcela de baixa renda, a mais expressiva do mercado em número de pessoas, está num momento de desesperança, descrédito, renda corroída pela inflação, asfixiada por dívidas que geram maior inadimplência e, literalmente, sem perspectivas reais de curto e médio prazo.
E é essa parcela que vai definir o resultado das próximas eleições.
Enquanto a parcela mais afluente do mercado define os caminhos, as opções à polarização, a 3ª via e outras possibilidades, os sobreviventes tentam encarar os brutais desafios do cotidiano. E, legitimamente, estão desesperançados, pois todas essas especulações, renúncias, alternativas e possibilidades não estão melhorando sua capacidade de consumo, de educar seus filhos, de melhorar a saúde da família e dar mais segurança para trabalhar e crescer social e economicamente.
Está faltando a todos os envolvidos um pouco mais de senso de realidade e conhecimento do momento do Brasil, dos dramas que estão sendo vividos pelos que menos têm, os sobreviventes, além de repensar o futuro próximo para criar esperança e perspectivas, sem confabulações que de nada valerão.
Nesse aspecto, quem é ligado ao varejo e consumo, especialmente os líderes que tocam essa realidade o dia todo, todo dia, interagindo com esse Brasil real, e não o das estatísticas, deveria se fazer mais presentes e decisivo para ajudar a direcionar a busca de caminhos que reduzam esse indesejável e crescente distanciamento entre os afluentes e os sobreviventes.
Essa é mais indesejável das polarizações.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
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