As empresas de transporte rodoviário interestadual de passageiros (Trip) que buscam a abertura do mercado já estudam a judicialização do novo marco regulatório previsto para ser publicado oficialmente no próximo mês.
A avaliação dos entrantes é de que “a guerra está perdida” junto à Agência Nacional de Transportes Terrestres, responsável pela regulação. Nessas avaliações, a tendência é que a ANTT mantenha as diretrizes já apresentadas, estabelecendo pouco espaço para a concorrência nas linhas com grande demanda de passageiros.
A agência oficializou na semana passada o quinto adiamento para a divulgação do novo marco.
Pelo último cronograma, a publicação estava prevista para 10 de outubro. Agora, a análise final está prevista para até o fim deste ano, “no sexto bimestre”, sem a definição de uma data específica. No relatório que justifica o adiamento, a ANTT diz que o ajuste se fez necessário para evitar insegurança jurídica.
O que está em jogo é a concorrência por linhas de ônibus interestaduais de todo o País. A movimentação pelas atuais mudanças tomou fôlego a partir de 2019, quando foi implementado o regime de autorizações, política que resultou na abertura do mercado para empresas entrantes. Muitas delas operaram por meio de aplicativos similares ao Uber, resultando em forte adesão de consumidores. Diante de contestações judiciais, houve recuos e a definição de que seria elaborada uma nova regulação. Enquanto isso, vigoram regras provisórias.
Disputa
A edição das normas movimenta diferentes pontos de vista e interesses. De um lado estão as empresas entrantes, que dizem que as regras propostas pela ANTT são contra a livre iniciativa. Do outro estão as empresas tradicionais, que dizem temer que a entrada desenfreada prejudique negócios, reduzindo receitas, o que resultaria em sucateamento de frotas e dos serviços de maneira geral. Em um terceiro ponto está a ANTT, que diz querer a abertura, mas com critérios para garantir segurança e evitar sucateamento dos serviços.
Um representante de grande empresa que busca operar no setor nacionalmente, que pediu para não se identificar justificando o risco de indisposições com o regulador, diz que hoje o horizonte é de que haja no máximo “pequenos ajustes” no texto apresentado em agosto deste ano durante consulta pública.
“A ANTT se revestiu de formalismo, seguindo rito para entregar a portaria do jeito que queria. Quando coloca uma série de restrições à entrada de novas empresas nos principais mercados, está descumprindo função primordial da lei de autorização. Estão aplicando contextos que limitam novas empresas e favorecem aquelas que já atuam”, afirma.
A Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiro (Anatrip), que reúne grandes empresas com atuação pelo País, diz que é a favor da abertura, mas que mantém preocupações pela garantia de regulação que mantenha e aprimore a qualidade do serviço de transporte rodoviário de passageiros.
A posição, assim, está alinhada com a minuta proposta. “A regulação deve se basear na continuidade e eficiência. Por termos um País de dimensões continentais, a Constituição estabelece que não se deve ter unicamente como objetivo o ganho de capital e o estabelecimento de crescimento de dados econômicos”, diz o assessor jurídico da Anatrip, Gabriel Oliveira.
“Em um exemplo prático, um mercado de transporte rodoviário de passageiros na linha Brasília x Goiânia que possua 10 empresas atualmente, não pode ter 100 empresas atuando ao mesmo tempo porque não há passageiros neste quantitativo que mantenha a eficiência econômica”, detalha Oliveira.
Ao mesmo tempo, o assessor diz que não há, na estrutura do Estado, capacidade de fiscalização para garantir a segurança do serviço com tantas empresas em uma única linha.
Em nota, a agência disse a seguinte íntegra: “O processo de atualização do marco regulatório TRIP está seguindo o rito legal e regulatório, estando programado para o sexto bimestre de 2023, conforme disposto na agenda regulatória”.
Propostas conhecidas
O pilar da minuta proposta prevê controle da entrada de novas empresas com base na avaliação de inviabilidade econômica, operacional e técnica da operação. Para o cálculo da inviabilidade econômica, a ANTT vai classificar os mercados em principais e subsidiários, em função da movimentação de passageiros nos últimos 12 meses. A ideia é determinar quantos operadores poderão atuar nos mercados principais, que serão divididos em três níveis.
Nos mercados nível 1, será permitida a entrada de mais 20% de novas empresas por ano. Nos de nível 2, apenas um novo operador poderá entrar anualmente. Já os mercados de nível 3 são considerados saturados, e não serão concedidas novas licenças até que sejam reclassificados para nível 1 ou 2.
Pela proposta, os mercados de nível 3 serão os que apresentarem índice de eficiência menor que 0,7. Isso quer dizer que se o preço praticado for inferior a 70% do que a ANTT entende como a tarifa de eficiência, a agência conclui que os operadores não vão conseguir prestar um serviço de qualidade. Isso porque o mercado está saturado, e as passagens não vão subir para atingir a tarifa de eficiência.
O advogado Alexandre Schiller, citado nas premissas da regulação enquanto autor sobre o tema, diz que o adiamento da semana passada é preocupante, embora já estivesse previsto pelo setor. “Ainda mais preocupante do que o atraso, é o procedimento que tem sido seguido pela agência. A ANTT não tem dado transparência ao processo de aprovação das novas regras, a despeito da sua relevância para a sociedade e das amplas críticas lançadas à proposta de novo marco regulatório”, afirma.
Na mesma linha, André Porto, advogado que é diretor-executivo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), entidade que reúne empresas de tecnologia prestadoras de serviços relacionados à mobilidade, diz que não consegue levantar hipóteses do que tem motivado os adiamentos. Para ele, há “flagrantes ilegalidades” que precisam ser corrigidas antes da análise e publicação final. “As contribuições foram feitas e aguardamos que eles levem em consideração. Confiamos que a ANTT vai rever alguns posicionamentos”, afirma.
Judicialização
A advogada Amanda Oliveira, professora de direito regulatório da Universidade de Brasília (UnB), diz que, da forma que a minuta está, há flagrante inconstitucionalidade. “O que me parece é que a ANTT está resistindo muito à inovação no setor, sendo este um dado objetivo. No fim do dia a razão para isso pouco importa, o que deve importar é que a Constituição precisa prevalecer. A tônica da nossa Carta Magna é a liberdade de iniciativa”, afirma.
A reação para a judicialização será rápida, como projeta Porto. “Todos estão acompanhando muito de perto. Tão logo a nova norma seja publicada, teremos condições de avaliar os termos trazidos e decidir as eventuais medidas. Mas precisamos antes ter a versão final. Estamos sem saber como estão sendo tratadas as demandas”, explica o advogado.
Schiller diz que é difícil prever qual será o resultado da judicialização, mas avalia que a tendência é de que o mercado continue a ser operado com base em decisões liminares e ordens judiciais, repetindo um histórico conhecido. “A longo prazo, é provável que a discussão vá ao Supremo Tribunal Federal”, afirma.
Há na Suprema Corte julgamento deste ano, decorrente das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 5549 e 6270, que aponta para a constitucionalidade do regime de autorizações para a criação de novas linhas. No julgamento, ministros defenderam a abertura do mercado e definiram que o Poder Executivo e a ANTT são os responsáveis por estabelecer os critérios para essas autorizações.
Em um cenário em que o judiciário decida que as normas são inconstitucionais, há a possibilidade de que a ANTT precise redesenhar as regras. “Vai depender do que for pedido em juízo. É crível pensar que há chance de prosperar ações pedindo nulidade da norma, acompanhado de licença para novas empresas operarem até que uma nova política seja elaborada”, explica a professora Amanda.
Com informações de Estadão Conteúdo (Luiz Araújo)
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