O quadro está sendo desenhado, mas já é possível perceber os contornos da nova realidade emergente: o aumento da competição, com o consumidor cada vez mais buscando alternativas de valor que pressupõem menos custos com gente; uma crescente carência de pessoas interessadas nas atividades antes tradicionais no varejo, em especial nas lojas; e um claro movimento de automação, mecanização e digitalização de tudo que for possível. Tudo isso afeta diretamente a estrutura e a lógica do emprego.
Em outra dimensão, o omniconsumidor – cidadão que, cada vez mais, interage por redes sociais e outros instrumentos digitais, gerando menos contatos humanos. Um processo quase irreversível de desumanização das relações pessoais em busca da redução de custos, melhoria de processos e atendimento das demandas por hiperconveniência, com o e-commerce crescendo sua participação entre os canais de venda no varejo.
E o lado mais próximo do humano que cresce são a criação e a ampliação dos ambientes de live marketing, que colocam alguma emoção no processo de escolha e compra de produtos e serviços, bots, chats e influenciadores digitais virtuais, com ativações ou com respostas mecânicas na solução de dúvidas e problemas reais.
E o metaverso, o VR e AR Commerce tendem a acelerar tudo o que já se configura.
Nos hotéis, nos embarques dos aeroportos e nas próprias lojas, quanto menos gente e interação, melhor. Por contingência, em busca da eficiência máxima, reduzindo custos para se manter competitivo.
E o mesmo omniconsumidor-cidadão vai perdendo conexões e relações humanas nas atividades profissionais pelas questões que envolvem o crescimento do irreversível home office, por mais que as organizações prefiram um equilíbrio distinto ao que se está desenhando. E organizações como Twitter tentam à força reverter o cenário do irreversível home office.
As interações humanas, olho no olho, toques e proximidade, ficam cada vez mais para o entretenimento e lazer, em especial para os segmentos mais jovens.
Talvez, o último espaço um pouco mais resguardado para a humanização no varejo seja o dos conceitos ligados ao luxo, em exato contraponto ao setor que mais cresce no varejo do mundo, que é o de valor, onde tudo gravita em torno de eficiência e produtividade ao menor custo para oferecer o menor preço.
No mundo do foodservice, exemplo desse processo, nos formatos mais básicos totens, robots, dispensers e outras alternativas tentam racionalizar e facilitar processos, reduzindo a presença humana. Nos restaurantes mais sofisticados, cresce de forma marcante a gorjeta obrigatória ou as recomendações de “tips”, que chegam a mais de 20% em alguns países, sinalizando o valor do serviço competente prestado.
Mas, de forma mais abrangente, não se pode negar que a palavra de ordem é eficiência máxima ao menor custo para se manter competitivo e, no extremo, sobreviver e crescer.
Se os conceitos acima parecem mais dramáticos do vemos no presente e futuro imediato, talvez seja porque esteja faltando observação e informação.
Mas como tudo que ameaça, também rende oportunidades. Trabalhar e desenvolver o lado humano nas relações profissionais e comerciais pode ser um elemento diferenciador no cenário reconfigurado, mesclando design, tecnologia, digital, arte, criatividade, experiência e gente, para criar o inusitado, diferenciado, único e customizado ou individualizado.
A proposição de novas alternativas para os negócios envolvendo produtos e serviços no varejo está vivendo uma nova e desafiadora perspectiva buscando a combinação ideal de elementos que, ao mesmo tempo que racionalizam e diferenciam, permitam vivenciar o novo, o inusitado, o meu e o único em busca de uma relação mas próxima e marcante. E que, reconhecidamente, despertem o sentimento que possa valer a pena pagar um pouco mais por tudo isso.
Esse conjunto de fatores, talvez, configure o maior desafio no cenário tendente à desumanização em busca da racionalização para esse ominiconsumidor cada vez mais digital e individual.
E estimulam a busca de elementos que façam emergir comportamentos, atitudes e reações que despertem sentimentos, sorrisos e emoções que possam fazer a diferença.
Como trazer o toque de um Cirque du Soleil para o ambiente de negócios para que emocionem e se diferenciem as relações?
Para além da necessária e fundamental busca da otimização operacional para viabilizar a continuidade de negócios, torna-se mais relevante buscar caminhos para voltar a encantar consumidores num ambiente de desencantamento, com as relações humanas que envolve muitos outros aspectos precipitados pelos cenários mais competitivos e desafiadores e que se agravam com questões envolvendo energia, combustíveis, inflação e restrições diversas de um mundo com muitos conflitos sociais e políticos.
As organizações que pesquisam, desenvolvem, testam e aplicam inovações em seus diversos canais, formatos, lojas, negócios e marcas, sem abrir mão da eficiência e produtividade, serão aquelas que poderão encontrar caminhos próprios e potencializadores de valorização e trazer respostas únicas para essa quase irreversível desumanização que envolve a sociedade e o varejo.
Vale a pena refletir. E agir.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
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