Imagine que no grupo do WhatsApp do seu prédio um vizinho passa a oferecer itens de mercearia, frutas e verduras com preço 30% menor do que você encontra no supermercado ou na feira. Para melhorar ainda mais a oferta, os produtos serão entregues na sua porta por esse vizinho no dia seguinte e a qualidade dos alimentos é ótima, pois os vegetais são trazidos direto do produtor “sem intermediários”. O que você acha? Você compraria?
Para milhões de chineses, a resposta para essa pergunta tem sido “sim”. Esse modelo de compras e de negócio estão sendo chamados na China de Community Group Buy (CGB). É o tema mais quente e é a grande aposta dos grandes conglomerados de consumo/varejo/tecnologia para a transformação digital nos próximos anos.
Varejo alimentar digital
Em todo o mundo, a categoria de alimentos dentro do lar é o maior segmento de consumo e varejo, entretanto, o varejo digital ainda não conseguiu decolar nessa área (particularmente nos perecíveis). Por conta do seu tamanho, frequência e relevância para os consumidores, essa categoria tem sido o Santo Graal das empresas/ecossistemas em todo o mundo. Todos gostariam de operar nela por meio do digital, mas poucos conseguiram executar com sucesso.
Na China, o segmento de alimentos faturou RMB 5,2 trilhões (ou R$ 4,2 trilhões) em 2019. Apesar de o país ter uma das maiores penetrações do digital do mundo nessa categoria, ela ainda não passou de 10% no país. Já no Brasil, o segmento de supermercados faturou R$ 378 bilhões em 2019 segundo a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) e com penetração do digital muito inferior a 1%.
Os principais motivos para a baixa penetração do digital nesse segmento são a complexidade logística, o aumento expressivo de custos – e, consequentemente, nos preços – e o próprio hábito do consumidor, que ainda prefere ir até as lojas físicas para poder escolher o produto e verificar a qualidade do que está comprando.
Apesar das suas complexidades, o setor é considerado o grande oceano azul ainda não explorado pelo digital. Outro fator importante é que ele é o mais representativo para as famílias de classes sociais mais baixas. No Brasil, essa categoria é responsável por 15% a 20% do total de gastos das famílias das classes C/D/E, famílias essas que são exatamente as que ainda estão fora dos canais digitais.
No Ocidente (incluindo o Brasil), as empresas têm tentado expandir sua atuação na venda digital de alimentos replicando o modus operandi das categorias não alimentares (entrega do CD para a residência, entrega a partir das lojas, pick-up em lojas, etc.), entretanto o modelo do CGB (Community Group Buy) reinventa essa cadeia logística e passa a ganhar popularidade na China, conseguindo unir qualidade, rapidez e preços baixos, fatores que os modelos tradicionais não conseguem equacionar.
Como funciona o CGB (Community Group Buy)
O modelo do CGB começou a ganhar ainda mais popularidade na China em 2020 com a pandemia, uma vez que os consumidores foram impedidos de circular nas ruas em busca dos seus alimentos frescos (por causa de questões culturais e históricos, os chineses dão muita importância ao frescor dos alimentos – prova disso são as sessões de frutos do mar vivos nos mercados da região). Além disso, outro fator importante para a popularização do modelo é que em crises a sensibilidade aos preços aumenta muito com a queda na renda das famílias. Ambos fatores são atendidos no modelo do CGB, sendo que o maior crescimento desse modelo tem acontecido nas cidades menores, que abrigam 60% dos consumidores do país, e justamente entre a população que ainda não estava digitalizada (mais pobres e mais velhos). Um recente estudo publicado pela McKinsey mostra que, impulsionado por esse tipo de modelo de negócio, 66% dos chineses agora já compram itens de supermercado online pelo menos a cada duas semanas, percentual que sobe para 75% nas grandes cidades.
Na prática, o modelo possui três elos principais, conforme ilustrado na figura abaixo: Plataforma, Líderes de Comunidade e Consumidores.
O elo da Plataforma é composto pelos gigantes que oferecem toda a infraestrutura tecnológica e logística para que o modelo funcione. São eles que fazem a seleção e o sourcing dos alimentos/produtos diretamente junto aos produtores/indústria. Eles são também responsáveis por receber os produtos em seus centros de distribuição, que organiza, separa e envia os pedidos para cada líder de comunidade dentro da plataforma.
Os Líderes de Comunidade, por sua vez, formam o ponto central desse modelo. São pessoas da comunidade que se cadastram na Plataforma e atuam como intermediários entre ela e os Consumidores. A maior parte deles é formada por profissionais autônomos, estudantes e donas de casa que usam esse trabalho como fonte de renda extra. Alguns desses líderes também são proprietários de pequenos comércios em suas comunidades.
Seu papel é formar grupos de compra que devem fazer seus pedidos pelo WeChat (WhatsApp chinês), usando mensagens de texto ou também por meio de miniapps, aplicativos que são integrados ao próprio WeChat. Pela facilidade no uso e pela familiaridade com a plataforma WeChat, o modelo se popularizou entre pessoas que estavam fora do mercado digital, incluindo as mais velhas.
Outro papel importante do Líder de Comunidade é manter o seu grupo engajado e promover os produtos que estão disponíveis na Pataforma, mandando mensagens, fotos e vídeos para divulgar os produtos.
Mas o principal papel do Líder de Comunidade é que ele também é responsável pela última milha, garantindo a entrega de cada pedido para seus compradores e arcando com todos os custos dessa operação. Cabe ao Líder decidir se ele irá entregar porta a porta ou criar algum sistema no qual seus compradores irão retirar os pedidos com ele.
Em contrapartida por esses serviços prestados, os Líderes recebem um percentual das vendas que eles conseguem capturar, geralmente 10% do valor das compras. Mas não é raro que esse percentual seja maior, uma vez que as diferentes plataformas estão brigando entre si para atrair e fidelizar os melhores Líderes de Comunidade.
Neste modelo de desintermediação, no qual os Líderes de Comunidade assumem o papel do varejo, a drástica redução dos custos de operação e logística e o apetite das plataformas em conquistar mercado permitem com que os preços oferecidos na Plataforma sejam imbatíveis, cerca de 20% a 30% mais baixos que os encontrados nos supermercados.
Alguns dados recentes divulgados pela Xingsheng Youxuan, uma das principais plataformas de CGB em operação na China, dão mais clareza sobre esse modelo. Eles mostram que os custos de entrega de mercearia nos modelos tradicionais custam em torno de RMB 7 a 10 (R$ 5 a 8) por pedido; no modelo de CGB, esse valor desaba para RMB 1,5 (R$ 1) por pedido
Briga de gigantes
O modelo do CGB cresce rápido. Essa modalidade saltou de um faturamento de RMB 25 bilhões (R$ 20 bilhões) para RMB 83 bilhões (R$ 66 bilhões) em 2020 e a perspectiva é manter esse ritmo de crescimento nos próximos anos. Ou seja: apesar de ser uma parcela ainda pequena do e-commerce chinês, a modalidade de CGB na China já está no mesmo patamar de faturamento de todo o e-commerce no Brasil.
Com essa rápida ascensão, o modelo chamou a atenção dos gigantes chineses e todos eles passaram a investir pesado no modelo nos últimos dois anos. Empresas como JD.com, Meituan, Pinduoduo, Bytedance/Tiktok, Didi, Kuaishou e Alibaba/Hema estão investindo nessa modalidade. Como exemplo desse fenômeno, em dezembro de 2020 a Xingsheng Youxuan (mencionada acima), fundada em 2014, recebeu um aporte de US$ 700 milhões da JD.com; em sua última rodada de investimentos, realizada em fevereiro de 2021, levantou outros US$ 2 bilhões.
Corra ou fique para trás
Na China, o modus operandi dos negócios segue a estratégia do “Blitzscaling” e do “Last Man Standing”. Ou seja: é preciso correr muito rápido, ser o pioneiro, crescer de forma exponencial, tomar o mercado e ser o último sobrevivente da competição. Nem que para isso seja preciso comprar o mercado. É exatamente por isso que essas gigantes que mencionamos neste artigo estão despejando caminhões de dinheiro no setor.
O modelo do CGB muda as dinâmicas do varejo, viabiliza a digitalização da última grande categoria de consumo e, na prática, tira poder do varejo tradicional, fazendo com que os varejistas pequenos se vejam em um dilema: se eles não adotarem o modelo do CGB, arriscam perder negócios; se eles entrarem, arriscam perder margem a ponto de o negócio ser insustentável.
É por esse motivo que o governo de Pequim tem entrado pesado tentando regulamentar minimamente o setor para evitar práticas predatórias. Em dezembro de 2020, emitiu uma nova lei e está impondo multas pesadas para quem não as cumprir (e proibido as Plataformas de vender abaixo do custo) e regulamentou o uso dos dados dos consumidores para que não haja manipulação de preços com base nessas informações e para que não ocorra o uso abusivo da sua dominância de mercado.
Este movimento do CGB é só mais um exemplo do ritmo de transformação que estamos vivendo, impulsionado ainda mais pela aceleração do digital causada pela pandemia e fazendo com que mesmos os gigantes do setor se sintam pressionados e precisem se reinventar. Quem não correr provavelmente ficará para trás.
Quer saber mais sobre o CGB? Leia o artigo que escrevemos sobre o Pinduoduo (clique aqui para ler).
Eduardo Yamashita é COO da Gouvêa Ecosystem.
Imagens: Reprodução e Envato/Arte/Mercado&Consumo