Transformação digital só existe para quem não é nascido digital e tem sua lógica com DNA analógico. E se tornou mais fundamental priorizar esse tema para acompanhar ou se antecipar, se for possível, a velocidade de as todas as transformações que vivem a sociedade, o mercado e a realidade de forma abrangente.
Em especial no mundo do consumo e do varejo.
É cada vez mais difícil e desafiador transformar uma organização ou um negócio, nascido analógico, para incorporar valores, atitude, velocidade e, em especial, cultura digital.
Principalmente para lideranças e negócios com mais tempo de atuação.
Transformação digital significa um pacto com a inovação constante e focada em resultados, mesmo que, nesse aspecto dos resultados, num ritmo diferente do que o das empresas originalmente analógicas.
A evolução digital trouxe consigo uma reversão na lógica da atratividade dos negócios.
Na lógica analógica, melhor é o que gera receitas, rentabilidade, resultados e rápido retorno dos investimentos no prazo mais curto.
Na lógica digital, melhor é o que maximiza o valor do negócio pela atratividade e potencial de crescimento das receitas e ocupação de espaço no mercado. E que possa gerar resultados num momento futuro. Como é a história da Amazon e muitos outros negócios que demoraram para mostrar a que vieram.
Mas, ainda que desafiadora e complexa, a transformação digital se impõe para sobreviver e, se possível, liderar no cenário atual e futuro.
Nos últimos tempos avançar no digital passou a ser condição necessária, mas não suficiente, para revitalizar negócios e assegurar um passaporte para o futuro.
Os vetores da transformação digital envolvem a integração de novos negócios digitais no conjunto dos negócios atuais, a incorporação de ferramentas e recursos digitais na gestão do conjunto de negócios, a incorporação de instrumentos digitais na execução dos negócios analógicos e, o mais desafiador, a evolução da cultura nascida analógica para uma cultura híbrida analógica com digital.
E tudo isso monitorado com metas pré-definidas que permitam o acompanhamento da evolução pretendida.
A medida da maturidade digital de um negócio se tornou um fator de avaliação efetiva das possibilidades estratégicas de curto, médio e longo prazo das empresas e passou a ser prioritariamente observada como decisiva na avaliação do potencial futuro dessa organização.
De forma habitual medidas possíveis envolvem a participação das receitas e dos resultados de negócios digitais, integrados ao longo do processo, no conjunto total dos negócios.
Vamos analisar cada um desses vetores para entender o processo de transformação de forma ampla.
1. Integração de novos negócios digitais no conjunto dos negócios atuais
Talvez a estratégia aparentemente mais simples, não fosse os desafios operacionais e culturais envolvidos no processo de transformação digital de uma organização.
Nas fases precursoras do e-commerce, muitas organizações globais, como Walmart, Carrefour e outras no Brasil, como Pão de Açúcar, optaram por desenvolver ou incorporar negócios nessa área numa operação apartada dos negócios tradicionais, com o argumento, aparentemente lógico, de que isso permitiria maior agilidade, autonomia e foco, sem comprometer os negócios existentes. Num primeiro momento até fez sentido separar estruturas, estoques, tecnologia e muitos outros recursos com a visão de que o foco e a velocidade compensariam a perda gerada pela desintegração.
No momento seguinte foi percebido que a lógica não se sustentava, pois o cliente era o mesmo, no digital ou no físico, e a falta da integração plena cobrava um preço alto pela experiência mais pobre oferecida por essa opção segmentada.
Na realidade atual, as empresas que têm buscado acelerar sua transformação digital têm usado e abusado das alternativas de incorporação de novos negócios nascidos digitais, startups ou mais maduros, e preferem integrar de forma plena aos negócios atuais, mais ou menos digitais, zelando para que essa integração ocorra da forma mais fácil possível. Cuidam dos temas de diferença cultural, valores e questões operacionais para tornar o processo o mais indolor possível sob o ponto de vista do omniconsumidor, que é o epicentro de tudo.
Esses são os bons exemplos da Magalu, Soma ou mais recentemente da Americanas e Arezzo por aqui, ou Ikea, Tesco e Walgreens, que evoluíram mais rapidamente na percepção da importância de transformar a organização de dentro para fora e de fora para dentro, simultânea e rapidamente.
2. Incorporação de ferramentas e recursos digitais na gestão do conjunto de negócios
Outro elemento importante da transformação digital das organizações e negócios envolve a necessária incorporação de ferramentas e recursos mais evoluídos e digitais para monitorar, avaliar e medir a evolução dos negócios e do desempenho do conjunto de todos os negócios de uma organização.
Aparentemente é um caminho simples de ser trilhado até por conta da crescente oferta de alternativas que vão das plataformas e sistemas de conhecimento e monitoramento, combinando potencialmente elementos analógicos e digitais. Sistemas integrados globais como Oracle, SAP, Zoho, Salesforce e mais os de origem local como Linx, Totvs, Vtex, ClearSale e muitos mais.
Sem falar nas perspectivas que se abrem com as opções No Code, permitindo que empresas criem soluções customizadas para sua própria realidade de forma mais rápida e com menores custos envolvidos.
São todos recursos avançados em suas propostas e de alguma forma “forçam” a evolução e transformação das organizações, das suas lideranças e de suas equipes pela lógica de sua estrutura e flexibilidade de recursos oferecidos. Sem falar em todo o processo da implantação em si que, usualmente, exige uma reciclagem ampla dos processos e dos profissionais envolvidos.
De alguma forma essas plataformas transcendem em sua proposta de controlar, informar e monitorar no que se propõem seja feito, pois aceleram a transformação da própria organização e sua cultura e sua comunicação interna e externa ao incorporar linguagem, recursos e lógica digitais, obrigando uma natural evolução cultural associada à sua finalidade específica.
3. Incorporação de instrumentos digitais na execução dos negócios analógicos
Em muitas organizações nascidas analógicas, a maior parte dos processos e operações é apoioada por instrumentos analógicos ou até mesmo alguns poucos digitais.
Isso é particularmente presente no mundo do varejo e do consumo com as operações de lojas, especialmente nos formatos mais tradicionais como supermercados, conveniência, hipermercados, cash and carry, lojas especializadas em material de construção, eletrônicos, moda e mais farmácias e drogarias.
E podem sobreviver e até expandir com a mesma lógica que viviam anteriormente.
Mas irão perdendo relevância e participação de mercado à medida que as novas gerações, predominantemente com comportamento e cultura digitais, atinjam maior participação no processo de decisão ou compra efetiva, em canais físicos ou digitais.
Daí a importância de buscar a inovação constante por meio de novos recursos que, ao mesmo tempo que racionalizam e facilitam, criem a dimensão da desejável expansão da experiência para o omniconsumidor.
Exemplos dessa prontidão em buscar alternativas para inovar, diferenciar e amplificar a experiência podem ser vistos na Nike, Ralph Lauren, Sephora em âmbito global e, no, Brasil no Boticário, Carrefour e Reserva.
Sem dúvida os ecossistemas chineses como JD.com, Alibaba e Tencent em suas operações de varejo e mais as plataformas exponenciais como Amazon, com Whole Foods e Amazon Go, assim como Boticário, Natura e Cacau Show, são geradores de benchmarks importantes nesse aspecto, ao adotarem inovações que integram experiências analógicas e digitais para avançarem e se diferenciarem incorporando às suas marcas essa componente importante de inovação e atualidade.
4. Evolução da cultura nascida analógica para uma cultura híbrida com digital
Este é um dos temas mais desafiadores nas discussões que envolvem a transformação digital.
Simples de enunciar, diagnosticar e desenhar modelos, como se sabe, tudo que envolve cultura organizacional e mudança de comportamento humano é mais complexo e difícil de implementar, em especial quando pressupõe mudanças de visão e atitude. E são limitadas todas as outras alternativas se não houver a necessária, ampla e irreversível mudança de comportamento e atitude que é o elemento mais importante dentre os vetores relacionados.
Por mais sensível que esteja a liderança em relação ao tema, quem nasceu analógico enfrenta naturais dificuldades para liderar na cultura digital. E a recíproca seguramente também é verdadeira.
Nesse vetor, os elementos que podem reduzir o desgaste envolvem a mixagem de culturas, a valorização da diversidade em todos os seus aspectos, o estímulo à inovação como atitude, a condescendência com erro quando na tentativa de acerto e muitos outros elementos mais.
Inegável que o diálogo, a tolerância, a conexão constante e assídua aos eventos e atividades que possam sensibilizar e direcionar a transformação e até a resignação em alguns aspectos são necessários.
Mas essa transformação da lógica dos negócios em ambiente digital comparativamente com a lógica daqueles nascidos analógicos é um desafio que muitas empresas e lideranças estão enfrentando nesse momento no mundo e também no Brasil, aprendendo no processo e buscando caminhos que indiquem a melhor forma de evoluir.
Em âmbito mais global, entre organizações e negócios em movimento positivo de evolução nesse caminho, do analógico para o híbrido analógico-digital, podemos incluir Walmart nestes últimos anos depois de sua reconfiguração organizacional, Costco, Walgreens Boots, Tesco, Ikea, Loblaw e Sonae, entre outros.
Se olharmos na realidade brasileira, merecem destaque Magalu, Via, Boticário, Americanas, Natura, Arezzo, Petz e Raia Drogasil, para ficarmos com aqueles que estão entre os maiores nos seus setores e que, mesmo durante a pandemia, fizeram movimentos estratégicos decisivos para promoverem sua transformação digital.
O tema é ainda inesgotável em seu aprofundamento, pois esse processo transformacional digital ocorre de forma intensa e global, acelerado em muitos aspectos pela pandemia da qual recém emergimos, e os movimentos se sucedem continua e permanentemente redesenhando a realidade desses setores no Brasil e no mundo.
Até por falta de opção e absoluta necessidade.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo e este artigo foi escrito com apoio de líderes do Ecossistema Gouvêa, a quem agradecemos o apoio e sugestões.
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