O tarifaço mundial de Trump bagunçou não só as estruturas do trading mundial como também os modelos de negócios já estabelecidos há dezenas de anos, como é o caso das marcas de luxo.
Antes do tarifaço, a barata mão de obra chinesa fazia parte do que chamo de “hipocrisia capitalista” e que, agora, foi descortinada ao mundo pela revolta da indústria manufatureira do país contra o movimento de taxar proposto por Trump, que expôs que os produtos destas marcas são, na verdade, produzidos com excelência sim, mas nas fábricas chinesas, a custos baixos, mas vendidos por fortunas no Ocidente.
Essa foi uma espécie de pata de elefante na reputação e no modelo de negócios das marcas de luxo, que se vangloriam de manufaturas artesanais para justificar o preço de seus produtos, mas que, na verdade, os produzem por meio de funcionários chineses, em máquinas de alta tecnologia nas fábricas chinesas.
Marcas como Gucci, Burberry, Chanel, entre outras, já comprometeram sua credibilidade (e sua histórica reputação). E não são somente os extratos de marcas de luxo que são produzidas na China, a preços módicos de manufatura, e vendidos a preços exorbitantes — mas estamos também falando de Nike, Lululemon, entre dezenas de outras, que também estão sentindo o baque.
No momento atual, não existem mais verdades absolutas sobre caminhos de crescimento e performance de mercados (no Brasil ou nos Estados Unidos), graças aos chacoalhões no tabuleiro de negócios internacionais. Incerteza é palavra de ordem. Predizer o futuro fica ridiculamente difícil num cenário assim, especialmente porque Trump acaba acordando de mal humor e mostrando para o mundo sua força narcísica, que pode impactar a economia global.
Mas, algumas coisas a gente consegue estabelecer como fundamentos para a construção de negócios de varejo. Entender a dinâmica do mercado, seus vícios e virtudes, o mecanismo de lealdade e de cultura são elementos fundamentais para o sucesso.
Por isso, relembro aqui aos leitores (que geralmente se surpreendem positivamente com as estratégias de marcas de varejo americanas nas feiras como NRF, por exemplo) fundamentos básicos de construção de marcas aos quais devemos ter atenção.
Será que a construção de posicionamento de negócios de varejo no Brasil é igual a do mercado americano?
O atributo preço
Morando aqui nos Estados Unidos nesses últimos meses, não pude deixar de presenciar essa e outras características de construção de posicionamento de negócios e marcas de varejo. E confirmar as diferenças das dinâmicas entre os dois mercados, especialmente na pujança que é o varejo americano que, mesmo com as mexidas na economia, ainda sobrevive bem.
A primeira grande diferença entre os mercados americano e brasileiro é a variável ‘preço’. E em todos os sentidos.
Preço, aqui nos Estados Unidos, não define qualidade — um atributo de impacto definitivo no mercado brasileiro, marcado por uma das maiores falácias do marketing: “se é caro é bom”. Por aqui, é claro que preço também pode ser um elemento de construção de equity de produto e de marca; no entanto, não tem peso fundamental nessa construção.
A acessibilidade a bens, aqui nos Estados Unidos, é mais uma questão de democracia do que de negócios. Todos podem (e devem) ter acesso a bens de consumo — apesar de que, sabemos, estamos falando de um capitalismo que tem seus problemas. Já o mesmo não acontece com os serviços, que têm preços exorbitantes e quase proibitivos. Ilustro como isso se dá por aqui:
Imagine comprar uma torneira sofisticada, de aço escovado e torneira removível, sensor automático de liga e desliga e outros features dos mais modernos que você possa imaginar. O custo desta torneira é relativamente acessível para praticamente todo mundo que trabalha das 9h às 5h. No entanto, prepare-se: você mesmo vai querer instalar. Um encanador ou bombeiro que for mexer nesta sua torneira sofisticada e tecnológica vai custar de 2 a 3 vezes o seu valor.
Já no Brasil, uma torneira de qualidade, aço escovado, e features modernos como sensor para abrir e fechar e vários tipos de esguicho de água, é exclusividade da classe A, dos Farialimers. Ao mesmo tempo, um encanador no Brasil custa muito pouco — apenas uma fração do preço da torneira — e, além disso, é pouco valorizado.
Essa é uma implicação interessante em ambos os mercados. Não é à toa que, por aqui, o DIY — do it yourself — é um segmento de mercado em serviços valorizado e incentivado para os americanos, com lojas especializadas e departamentos internos de grandes lojas âncora oferecendo de equipamentos a acesso a novas tecnologias construtivas para residência. Enquanto que no Brasil, chamar um faz-tudo, daqueles que o zelador conhece, vai te custar alguns poucos centavos.
Fica muito claro que exatamente pela acessibilidade de produtos a todos, o tráfego e o giro nas lojas americanas são sempre muito alto. Isso traz várias implicações na dinâmica do varejo para o Brasil, por exemplo:
- Tráfego em loja – Enquanto nos Estados Unidos ele acontece de forma quase que instantânea e natural, no Brasil, promoções e inovações são elementos fundamentais para o incremento de tráfego, diminuindo “margem” e, ao mesmo tempo, prejudicando a construção de marca.
- Qualidade de produto – A manutenção de uma linha de produtos rentáveis, ao mesmo tempo que acessíveis no Brasil, fica cada vez mais prejudicada, uma vez que a equação de Value for Money entra em jogo (preço pela qualidade); um desafio para os empresários brasileiros, dado à dinâmica fiscal e de logística brasileira.
- Pensamento em quantidade e não qualidade – A preocupação com fluxo de usuários nas lojas desvia o foco do varejo em elementos fundamentais atualmente, como a oferta de serviços e o pós-vendas. Um grande executivo do varejo brasileiro costuma dizer: “o volume é inimigo da qualidade no atendimento, especialmente no front end das lojas físicas”.
Talvez essas sejam conclusões básicas e já conhecidas de vocês, mas sempre vale lembrar da máxima: “o que é bom para os Estados Unidos, pode não servir para o Brasil.
Atributo portfólio
Outro aspecto interessante da acessibilidade do consumo (e do consumidor) americano é a variedade de SKUs nas lojas — em quaisquer segmentos e categorias — um elemento assustador para o consumidor brasileiro.
“Cadeira para bancada de cozinha, numa altura que está entre a cadeira de balcão de bar e a de mesa? Temos”. “Calça jeans para mulheres cadeirudas e baixinhas? Temos”. “Cesto de lixo com design em aço inox escovado que abre e fecha com comando de voz (acessível)? Temos”.
Pense em qualquer comodidade da vida moderna e você encontrará num passe de mágica. Até mesmo compras impensáveis, como carros importados, especialmente chineses, e até casas pré-fabricadas feitas com impressoras gigantes 3D, são vendidas pelas plataformas como Amazon ou TikTok Shop, por exemplo.
Esse vetor de quantidade de SKUs no varejo americano, aliado à acessibilidade, forma um binômio excepcionalmente forte, incentivando positivamente o consumidor a comprar, ambos elementos da equação de varejo faltantes no mercado brasileiro.
Algumas implicações sobre portfólio “enxuto” que o Brasil oferece também alteram a dinâmica de varejo entre os dois países:
- Menor capacidade de personalização e segmentação – Enquanto o portfólio americano extenso permite ao consumidor encontrar exatamente o que deseja (gerando fidelização pela adequação exata às necessidades), o portfólio reduzido no Brasil força o consumidor a adaptar suas escolhas. Isso enfraquece o vínculo emocional com as marcas e reduz a percepção de valor agregado pela compra, tornando a concorrência predominantemente centrada no preço.
- Desestímulo à inovação e experimentação – Com menor variedade disponível, o varejista brasileiro tende a apostar em produtos mais seguros e de alta rotatividade, limitando a oferta de itens inovadores, diferenciados ou mais sofisticados. Isso reduz significativamente a oportunidade de lançar e testar novos conceitos e categorias no mercado, tornando o varejo local mais conservador e previsível em comparação com o mercado americano.
- Pressão sobre margens e posicionamento de marca – A necessidade de atender grandes volumes de consumidores da classe média e baixa com produtos básicos restringe a diversificação do portfólio brasileiro. Esse cenário pressiona negativamente as margens, já que as disputas ocorrem principalmente em itens comoditizados, deixando pouco espaço para construir valor intangível ou reputação premium, o que dificulta o desenvolvimento sustentável da marca no longo prazo.
Se a gente olhar para as questões de logísticas e fiscais, a gente vai enxergar a distância aumentar na construção de posicionamento de negócios de varejo nos Estados Unidos e no Brasil.
Não, este não é um artigo para deprimir o leitor, nem o gestor de varejo. Até porque, de uns anos para cá, a implementação de tecnologia no varejo americano tem afastado ainda mais a relação entre o usuário e o vendedor (especialmente no Brick and Mortar) de uma relação amigável, próxima e empática, um fator absolutamente presente no varejo físico brasileiro.
Vale o destaque: no SXSW deste ano, a visão predominante foi de que o grande desafio dos negócios na era da IA é justamente reaproximar usuários de pessoas reais, afastando-os das relações mecanizadas com chatbots e automações.
Curiosamente, essa solução, que soa estratégica nos Estados Unidos, é intuitiva para os brasileiros. E não importa o motivo: por sermos mais humanos no varejo, pela ausência de recursos para digitalização e tecnologia do segmento, seja pela natureza empática do povo brasileiro.
Colocar pessoas reais na jornada de compra é algo que o varejo brasileiro sempre fez e continua fazendo bem. Talvez por isso nosso mercado seja, em sua essência, mais humano e, nem por isso, menos competitivo do que o varejo americano, que muitas vezes deixa a cargo das máquinas serviços fundamentais, como atendimento e pós-venda.
Ulisses Zamboni é chairman e sócio-fundador da Agência Santa Clara.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagem: Envato