Tenho certeza de que vale iniciar esse artigo sendo didático: proposta de valor de marca e posicionamento de negócios são conceitos diferentes, mas com alta intimidade entre si. Essa é uma confusão que encontro em várias de minhas reuniões com empresas e profissionais de mercado no Brasil e mundo afora.
Propósito corporativo é uma espécie de pano de fundo para o posicionamento de negócios. A execução de ambos conceitos é necessária para uma corporação nos dias de hoje, por menor que a empresa seja. Não só. Esses conceitos são demandados tanto pelos consumidores como pelo próprio mercado, que está cada vez mais acirrado e competitivo. É por isso que vale explicitar ambas definições.
Define-se propósito corporativo como a razão pela qual uma empresa existe acima da razão dela querer fazer dinheiro e entregar lucro aos acionistas. É sempre uma razão nobre que a direciona nas suas metas, valores e aspirações, além de inspirar e guiar todos os stakeholders que orbitam ao seu redor.
Dentro do propósito estão os valores e princípios basais da corporação. Por isso, demanda da companhia esforços proativos na definição e, obviamente, no cumprimento de sua ética e integridade.
Você pode se perguntar (como já ouvi centenas de vezes): no Brasil, ninguém deixa de comprar por questões filosóficas ou conceituais. Essa realidade tem desaparecido cada vez mais. Vejam os cancelamentos de empresas nas plataformas do mundo digital. Muitos desonestos e fora da realidade, mas outros acabam ensinando as empresas a lidar com seus públicos de forma mais contemporânea.
Um exemplo reconhecido e até já desgastado de tão usado, mas que ajuda a compreensão do conceito de propósito corporativo é o da Google. A Google tem como propósito maior executar “a missão de organizar a informação do mundo e torná-la acessível e útil para todos”. Simples e nobre. Quem de nós não precisa de uma empresa como essa?
Vejam que esse propósito suscita questões importantes de como essa organização de informação é feita e como é disponibilizada. Não é à toa que as discussões sobre sigilo de dados, gestão de informação pública e privada e outros assuntos delicados, mais éticos, aumentam em importância. Daí, entram em cena os princípios da companhia para reger esse modus operandi.
Pode-se dizer que propósito corporativo é um conceito novo para os negócios. A grosso modo, ele deveria representar as empresas desde sua fundação porque é basal e inerente ao início das atividades, mas nem sempre é assim que acontece e por isso vemos uma enxurrada de empresas correndo atrás do prejuízo.
Já o posicionamento de negócios se refere ao processo de estabelecer uma identidade única e diferenciada sobre todas as entregas que o negócio se propõe, não só no território tangível em valor de produto ou serviço, mas em como a empresa embala isso. O posicionamento anda de braços dados com o propósito. Enquanto propósito corporativo é o “o que”, o posicionamento de negócio é a execução do “como”.
Quanto mais próximos e complementares, melhor. O caso mais emblemático que o mundo todo acompanha é o da marca Patagonia, que entrega sua proposta de valor de “lembrar cada um de nós que nós também somos natureza e que ela deve ser bem tratada”, seu propósito é executado de forma única, diferenciada e praticamente exclusiva em suas ações de marketing.
O marketing não consegue mais mentir
O que se comunica a respeito de uma empresa para seus stakeholders, seja ela sua oferta de negócios, seu impacto na comunidade, seus desejos e ambições, assim como seu seu propósito corporativo e seu posicionamento de negócios, têm de estar lastreados na mais pura verdade corporativa.
Essa frase embute nela uma realidade arrasadora para o mercado. O propósito corporativo tem sido usado apenas como ferramenta de marketing para alavancar os negócios e artificialmente melhorar a percepção da empresa.
Ao longo dos meus 40 anos de estrategista de negócios, nunca vi discurso bonito de empresa ficar de pé só porque foi feito por uma agência de branding ou publicidade moderna e premiada, tão pouco porque foi retirado da cabeça do seu diretor de marketing ou seus estrategistas de negócios.
Digo sempre na minha primeira conversa com os contratantes de um projeto de reposicionamento de marca, seja ele quem for, CEO, C-level ou diretor de marketing, que a tarefa do projeto não é a de construção de imagem corporativa, mas a de antropologia corporativa.
Sim, uma espécie de investigação interna e externa sobre percepção e realidade do que a empresa é aos olhos dos stakeholders para decodificação de sua biologia ou estrutura interna e seus traços culturais.
O DNA de uma empresa, seja ela nacional ou multi, é mais forte do que qualquer narrativa criada por uma campanha de publicidade baseada em tendências de mercado e conceitos contemporâneos de comunicação. E é através dele que se constrói um propósito corporativo.
Não podemos nos enganar. Como estamos vivendo no mundo da espetacularização da comunicação e das narrativas virtuosas a qualquer custo, a máxima de que uma campanha de comunicação resolve a questão ou ‘está na mídia, portanto é de verdade’ não se aplica para o propósito corporativo das companhias.
Por que não dá para mentir num projeto de propósito? Porque um negócio não é uma ilha. Ao contrário, é uma constelação de empresas e pessoas trabalhando em rede que se beneficiam mutuamente, retroalimentando-se de suas competências e verdades para que elas todas cresçam juntas.
Se uma – e apenas uma – destas partes resolver mentir ou construir uma verdade provisória sem apoio na realidade, essa rede de esforços vai minando e, como consequência, perdendo seu tônus e lastro na mente do usuário.
Pare para pensar: o propósito corporativo da sua empresa está mais para execução de campanha ou para ser executado junto aos stakeholders e cadeia de valor?
Second Growth Engine e o posicionamento de negócios
Vale um comentário atual e não menos importante sobre posicionamento de negócios. Não acredite no que você aprendeu nos bancos da universidade. Como assim? É isso mesmo. Ainda vejo aqui e ali algumas faculdades de marketing e comunicação que afirmam categoricamente que posicionamento de negócios e marca são imutáveis. Uma verdade para o século passado, mas anacrônica para este.
Uma das lições mais importantes que tivemos em janeiro deste ano na NRF Retail’s Big Show foi a necessidade de se reavaliar o posicionamento dos negócios o tempo todo. E essa lição se cristalizou ainda mais com algumas palestras da SXSW, evento de tecnologia e inovação realizado neste mês.
Tecnologia na velocidade da luz e o consumidor com baixíssima fidelidade. Esses são dois pontos fundamentais do novo marketing, que prevê a tão falada centralidade no usuário. A cultura, o contexto competitivo e a tecnologia estão numa velocidade tão impressionante que até mesmo a proposta de valor do negócio pode sofrer alterações para sobreviver.
Posicionar-se é mostrar-se único, diferente e exclusivo na entrega de suas ofertas. Não é à toa que muitas das companhias que conhecemos no Brasil e fora estão lançando mão de uma Second Growth Engine (em português “máquina secundária de crescimento”) em seus negócios para se diferenciar.
O conceito de Second Growth Engine está aí para ser pensado com seriedade, seja para agregar valor ao negócio principal, seja porque a receita do core business está no teto e cheia de competidores ou, finalmente, porque o contexto cultural mudou tão radicalmente que não consegue mais se diferenciar ou agregar valor na fidelização de usuários.
O SGE é uma necessidade da nova economia. Numa pesquisa feita em 2022 pela Harvard Business Review, 65% dos CEOs entrevistados afirmam que em 5 anos o panorama de competição em suas categorias será completamente diferente do que é hoje, inferindo que os negócios estão e estarão daqui para frente em completa mutação.
Não só. Esses CEOs têm certeza de que, em uma década, 40% das receitas das suas empresas virão destes negócios que estão sendo alavancados agora, nesse exato momento.
Não precisa ser um gênio do marketing para entender que as mudanças sociais, somadas à velocidade das mudanças tecnológicas, estão fazendo com que os negócios se repensem em períodos menos longos, ou seja, de forma mais constante. E que também os negócios são fluídos, menos do que a cultura, é claro, mas são mais dinâmicos do que já foram antigamente.
No Brasil, a gente vê a olhos nus essas mudanças, especialmente no varejo. Veja o caso da Track & Field fazendo um movimento claro para ser uma marca que tem como posicionamento do negócio saúde e bem estar em oposição apenas às roupas e aos equipamentos de ginástica. E, esse posicionamento é tão contemporâneo que chega próximo a definição de um propósito da marca existir.
Evidência disso está no lançamento do TFC Food and Market, uma nova vertical de negócios complementar ao negócio, que evidencia uma nova orientação na proposta de valor da companhia.
Para terminar
A realidade é uma só: as marcas navegam entre o seu legado e a inovação. Por isso, a coerência entre o propósito corporativo e o posicionamento de negócios nunca foi tão crucial.
O desafio reside não apenas em articular um propósito nobre, mas em vivê-lo autenticamente, tecendo-o no tecido do dia a dia empresarial. O consumidor moderno, dotado de um senso crítico acima da média e passível de ser impactado pelas mídias sociais o tempo todo, tenta discernir entre genuinidade e artifício. Faz parte dos novos negócios cumprirem com absoluta verdade suas missões.
Esse assunto já foi tema de marketing e de comunicação. Hoje é um projeto estratégico responsável pela alavancagem de negócios ou pela derrocada da empresa. Como diriam os americanos é um make or break (faça ou quebre).
A especialização no tema é vital. Empresas de comunicação e de branding sérias são capazes de articular esses conceitos de forma a recolocar os negócios no mundo contemporâneo que descrevi aqui.
A busca por relevância e ressonância no mercado de hoje exige mais do que simplesmente ser visto; exige ter valor e um significado. E, nessa encruzilhada entre significado e visibilidade, marcas que conseguem unir seu propósito com seu posicionamento não apenas prosperam, mas também moldam o futuro do engajamento empresarial.
E, você? Precisa rever seu propósito empresarial?
Ulisses Zamboni é chairman e sócio-fundador da Agência Santa Clara.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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