Nos últimos meses, o volume de consultas de empresas para reestruturar a dívida cresceu 300%, segundo Ricardo Knoepfelmacher (mais conhecido como Ricardo K.), sócio da RK Partners, responsável pelas principais reestruturações de empresas no Brasil.
Há dois anos, ele alertava para os riscos da abundância de dinheiro no mercado, que acabou criando uma distorção. Na época, o consultor afirmou que as empresas estavam entre entrar em recuperação judicial e fazer um IPO. A conta chegaria em dois anos.
Hoje ele vê o cenário mais complicado, com juros altos e restrição de crédito por causa da Americanas. Para o consultor, a decisão dos bancos de segurar o crédito pode piorar ainda mais a situação. “Os bancos estão pensando no balanço deles, mas pode haver um efeito sistêmico no varejo.”
Confira trechos da entrevista:
O que explica o cenário mais complicado para as empresas neste ano?
É a conjunção de três fatores: a desorganização das cadeias produtivas no pós-covid aliada à guerra da Ucrânia, que elevou o preço da energia e provocou inflação mundial, além do caos político interno, que acabou fazendo com que o nosso juro básico ficasse altíssimo. Estamos falando de uma taxa de 13,75% ao ano. Uma empresa grande está captando a CDI mais 3%. Uma empresa média, a CDI mais 6%. Isso significa uma taxa de 20% ao ano. É muito difícil uma empresa que esteja alavancada não ter problema.
Tem muita empresa alavancada?
Hoje o grau de alavancagem das empresas, até por causa da crise, é mais ou menos a metade do que a gente via no governo da presidente Dilma (Rousseff). Mas aquelas que estão alavancadas estão passando um perrengue danado, especialmente nos setores dos quais os bancos estão mais apavorados, como varejo. Aí a situação de crédito e de renovação de linhas têm sido dramática. Esse movimento que a gente começa a ver com Americanas é o início de uma onda que virá por aí de empresas médias e grandes pedindo água.
Mas qual a origem de todo esse problema?
Sempre achei que o problema não ocorreria durante a covid. Quando a pandemia começou, os bancos decidiram chamar os clientes para renegociar e rolar as dívidas. Há três, quatro anos elas se beneficiaram de um excesso de liquidez e boas taxas de juros. No segundo semestre, está vencendo uma série de emissões de grandes empresas.
Qual o impacto de Americanas nesse cenário?
Ninguém imaginava esse problema numa das maiores empresas de varejo do Brasil. Isso está fazendo com que os bancos fiquem ultra cautelosos e tenham uma postura muito conservadora na concessão de novos empréstimos e na renovação dos atuais mesmo para empresas que não estão ligadas a Americanas. Empresas menores que precisam desse tipo de capital de giro não estão conseguindo obter crédito. Alguns bancos determinaram que esses produtos não são mais oferecidos. Isso vai provocar uma grande contração de crédito.
Isso não é um tiro no pé?
Sim e não. Isso pode criar um círculo vicioso. Numa empresa como Americanas, o ciclo médio de venda e recebimento era padrão. Ele recebia e pagava o produto entre 90 e 120 dias. Ela comprava chocolate e pagava em quatro meses. Agora quem vai querer vender sem ser à vista? A situação que era ruim vai piorar muito. Os bancos, quando veem essa situação, diminuem o risco setorial. Se der problema em outras companhias, o nível de provisão dos bancos tem de aumentar. Mas, ao não dar crédito, a chance das outras empresas solapar aumenta. Eles estão pensando no balanço deles, mas isso pode ter um efeito sistêmico, pode afetar muito o varejo. E, para ajudar, vamos ter uma recessão pela frente, com juro alto. Não estamos num bom momento da economia.
Outros setores podem ser atingidos?
Vamos ter alguns setores que não conseguiram se recuperar até agora, como infraestrutura. As grandes empreiteiras estão combalidas, pois não têm investimentos, não têm pipeline de obras. E vão continuar combalidas. Empresas que não tinham entrado em RJ devem entrar agora. Essa é a tendência. O setor de construção residencial também vai sofrer. Por mais que os preços tenham subido, eles não conseguiram repassar o aumento dos insumos, como o preço do vidro, do cimento, do ferro, os insumos da obra. Estamos vivendo um caso semelhante ao que vimos há alguns anos, em que houve um colapso setorial.
Então o problema pode atingir vários setores?
A taxa de juros alta vai trazer um problema que permeia vários setores. Vai haver uma contração da economia e o País não vai crescer como muitos imaginavam. Então acredito que vai ser um problema na economia como um todo. A taxa de juros vai ser um grande inibidor do crescimento e vai atrapalhar muito a vida das empresas que precisam renegociar as suas dívidas.
Qual a expectativa de número de RJs?
Normalmente, o número de processos no Brasil sempre orbita entre 1.300 e 1.500 recuperações por ano. Na pandemia, ficou em 1.400. Não acredito numa explosão porque a recuperação é um processo caro para as empresas. Não é qualquer uma que tem condições de fazer uma recuperação judicial, pagar um assessor financeiro, advogado, administrador judicial. Todo esse rito é muito caro. O que mede a situação complicada é a inadimplência. Hoje 30% das empresas brasileiras estão inadimplentes. Basta olhar na Serasa para ver que empresa pequenas, médias e grandes estão com dificuldade de pagar em dia as suas dívidas. Hoje o mercado não tem liquidez para que as grandes empresas possam fazer novas emissões de títulos.
Essas empresas vão virar empresas zumbis?
Vai haver um aumento da RJ, sem dúvida, mas ele está circunscrito a elite dessas empresas maiores. As outras vão ter de entrar em negociações bilaterais com os bancos, mas isso vai fazer com que os bancos se contraiam ainda mais na concessão de crédito. 2023 já começou com grandes provisões, de alguns milhões. Isso não é comum para um início de ano. Em geral esses ajustes são feitos sempre no último trimestre. Então eles vão apertar mais para que a coisa não piore ao longo do ano.
Em 2020, o sr. havia dito que as empresas estavam entre pedir recuperação judicial e fazer um IPO? A conta chegou?
Havia uma abundância de crédito e demanda por IPO. Qualquer plano de negócio que se colocava no mercado, vendia. A taxa de juros de renda fixa estava muito baixa e as pessoas queriam mais remuneração. Então a empresa tinha as opções de entrar em recuperação judicial e reestruturar a dívida, captar via dívida para pagar o crédito velho ou captar através de equity num IPO. Então quem é que pagou o pato por essa por essa orgia de IPO desgovernados? Foi o coitado do investidor. Dos 83 IPOs feitos em 2019 e 2020, 80% valem menos do que quando fizeram a oferta de ações. Isso porque o plano de negócios não deu certo. Todas as previsões de geração de dividendos e preço da ação se frustraram. Mas elas não fizeram novas dívidas. O investidor tem uma empresa que vale 10% que valia quando ele entrou no IPO, mas pelo menos ela não quebrou. Ainda.
Com informações de Estadão Conteúdo (Renée Pereira)
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