O consumidor brasileiro está voltando a comprar, ainda que com cautela, e vem animando o varejo, que espera um segundo semestre mais promissor. A constatação é do Índice Nacional de Confiança (INC), elaborado para a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) pela PiniOn, que registrou a alta do otimismo da população em relação à economia durante três meses seguidos.
Em agosto, o indicador chegou a 103 pontos, mostrando aumentos de 1,0% e 13,2%, em relação a julho e na comparação com o mesmo mês de 2022, respectivamente.
Essa melhora na confiança ainda não refletiu nas vendas de segmentos de itens de maior valor, carro ou casa. Mas a porcentagem de pessoas que têm intenção de comprar bens duráveis, tais como geladeira e fogão, aumentou.
Segundo o economista Ulisses Ruiz de Gamboa, da ACSP, esses dados mostram a resiliência da população com à retomada da economia, a política monetária – início da queda de juros – e o aquecimento do mercado de trabalho. “Não é um aumento absurdo [de confiança], mas podemos sentir que o consumidor está mais confiante. O fato é que estamos observando aumento na ocupação do emprego e na renda.”
Gamboa afirma que a expectativa da ACSP é de que as vendas do varejo comecem a se recuperar a partir do terceiro trimestre, fechando o ano com crescimento de 1,7%.
Outra pesquisa, da fintech Trigg, aponta que 71,94% dos brasileiros querem comprar mais no segundo semestre do que compraram no primeiro. A mostra também constatou que 17,85% ainda não sabem se vão às compras e apenas 10,22% querem comprar menos.
Vendas no varejo restrito efetivas e projetadas
Itens básicos concentram compras
De acordo com o levantamento, gastos com alimentação, saúde, eletroeletrônicos, educação e viagem são os principais planos dos brasileiros para o segundo semestre.
Quando questionados sobre preferências, 36,59% dos entrevistados responderam que vão priorizar a compra de itens com valores acessíveis e promoções.
Segundo o economista da ACSP, as vendas atualmente estão concentradas em itens mais básicos, de primeira necessidade, como alimentação (destaque para o crescimento das vendas nos atacarejos), farmácia e combustíveis, e assim devem permanecer no segundo semestre.
“Durante o isolamento social, observamos o aumento na demanda por smartphone e notebook. Porém, o home office não é mais uma regra e esses produtos têm durabilidade alta, o que vem refletindo nas vendas.”
Segmentos resilientes vêm se destacando
Rodrigo Catani, head da Gouvêa Consulting e colunista da Mercado&Consumo, diz que não dá para falar da recuperação do varejo como um todo. “Estamos vivendo um cenário de juros muito altos, apesar da última queda, o que impacta muito no desempenho do varejo, principalmente nas compras mais planejadas: eletrodoméstico, eletroeletrônicos etc.”
O fim do crédito parcelado sem juros, em discussão pelo governo, pode afetar o consumo, uma vez que essa é uma das ferramentas mais utilizadas pelo varejo brasileiro para impulsionar as vendas, pois permite que o consumidor realize compras sem comprometer o orçamento familiar no curto prazo.
Catani destaca que segmentos resilientes – farmácias, alimentação, higiene e beleza – estão em alta. Os dois últimos, inclusive, ganharam destaque no e-commerce. Já o setor de material de construção, que precisa de estímulo e financiamento, continua sofrendo. A moda também está enfrentando dificuldades por causa do cenário atípico de temperatura. “Fica difícil planejar as coleções com a mudança brusca de temperatura.”
O consultor acredita que o varejo terá um semestre ainda desafiador, porém melhor do que o início do ano. “O segundo semestre será menos otimista do que o que esperamos, mas será melhor do que o primeiro. Haverá crescimento, mas com um percentual menor.”
População já começa a sentir deflação nos alimentos
Para Guilherme Dietze, assessor econômico da FecomercioSP, a queda na inflação dos alimentos, registrada em julho – último levantamento feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – já vem sendo sentida pela população. No período, o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), a inflação oficial do país, apontou queda de 0,46% no grupo alimentação, principalmente nos preços da alimentação no domicílio (-0,72%), que já haviam recuado em junho (-1,07%).
“A maioria dos cortes de carne já está mais barata. Também é possível sentir a queda no preço do óleo de soja, que tem grande peso na cesta básica do brasileiro, assim como no do feijão. Esse movimento começou em junho e seguiu em julho e agosto. Tudo isso reflete na confiança do consumidor”, explica Dietze.
A recuperação, no entanto, não deve ser assimétrica, segundo Dietze. “Não são todos os segmentos que estão registrando crescimento nas vendas, no Brasil como um todo. Os ganhos estão concentrados nas farmácias e supermercados. Todo o poder de compra que o brasileiro vem conseguindo vem sendo revertido para esses setores. Material de construção, móveis e decoração, por exemplo, estão vendendo menos do que em 2022.”
Dietze pontua que o setor de combustível, apesar de registrar queda no faturamento em relação a 2022, não encolheu no volume comercializado. O que se viu foi a queda no preços da gasolina e do etanol etc, o que, consequentemente, afetou o faturamento.
Assim como o economista da ACSP, ele acredita que o crescimento das vendas no segundo semestre deve privilegiar setores diretamente ligados ao dia a dia do consumidor: supermercados e farmácias.
“De maneira geral, a expectativa para o varejo no segundo semestre é positiva. Temos inflação e juros em queda, o que permite ganho de poder de compra para o brasileiro. Vemos mais empregos sendo gerados, o que dá mais segurança para gastar”, sinaliza.
Dietze acredita, porém, que o ciclo de recuperação será mais forte no primeiro semestre de 2024, com o reajuste do salário mínimo, o corte de juros maior e os efeitos da inflação mais controlados.
Datas comemorativas estão melhores que em 2022
Daniel Sakamoto, gerente-executivo da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), diz que, de forma geral, o que se vê em 2023 é que as vendas do varejo nas datas comemorativas têm sido melhores do que no ano passado.
Ele diz que tanto o varejo restrito – bens não-duráveis e semiduráveis – quanto o varejo ampliado – como supermercados, combustíveis e móveis e eletrodomésticos – estão melhores do que no mesmo semestre no ano passado.
De acordo com os últimos dados divulgados pelo IBGE, o volume de vendas do varejo chegou a junho em patamar 3% acima do nível de fevereiro de 2020, no pré-pandemia. No varejo ampliado, que inclui as atividades de veículos e material de construção, as vendas operam 4,8% acima da pré-pandemia.
“O desempenho do setor de vestuário e calçados, no entanto, ainda preocupa. Houve queda de quase 10%. Atribuímos isso à concorrência de marketplace internacionais”, afirma.
Para se ter uma ideia, as importações de produtos chineses de até US$ 50, que são isentos do Imposto de Importação, cresceram 38% em 2023, segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Já a carga tributária efetiva incidente sobre produtos vendidos no Brasil varia de 67,95% a 142,98%, dependendo do segmento.
Para Sakamoto, o varejo brasileiro tem de se preocupar com a qualificação da mão de obra e os elementos da transformação digital. “O varejo tem muita concorrência e a transformação digital está vindo rápido. Quem não se preocupar, ficará para trás”
Outro ponto de atenção, segundo ele, é a experiência do consumidor. “E ela não está vinculada a um item específico. Uma loja limpa, cheirosa, iluminada e com atendente simpático gera mais impacto do que uma loja toda tecnológica, fria e sem a preocupação com o consumidor.”
Gamboa, da ACSP, acredita que os itens mais caros acabam tendo desvantagens em relação às lembrancinhas. Porém, espera-se crescimento de vendas no Natal deste ano, em relação a 2022.
“Sabemos que a retomada do varejo não será rápida e as vendas não serão espetaculares, considerando o endividamento das famílias e o fato de a queda dos juros ser lenta e não chegar à ponta tão rapidamente, mas há otimismo.”
Segundo ele, parte do 13º salário deve ir para o pagamento de dívidas e parte para o consumo de itens.
Varejo tradicional avança no mundo digital
Fabio Aloi, sócio-diretor da consultoria Friedman, diz que a digitalização do varejo, acelerada durante a pandemia, vem se fortalecendo. Segundo ele, varejistas tradicionais avançaram em suas avenidas de crescimento digitais e nativos digitais estão migrando para o varejo tradicional.
“Um número surpreendentemente baixo de varejistas tradicionais sofreu sérios problemas de falência. Mas muitos mais ganharam um segundo fôlego utilizando a velocidade dos nativos digitais para ampliar seus recursos omnichannel e adotar formas de trabalho mais ágeis para fortalecer vendas e lucros.”
De acordo com Aloi, enquanto varejistas tradicionais estão investindo em tecnologia e inovação, nativos digitais buscam as competências clássicas dos varejistas tradicionais por meio de aquisições ou abrindo lojas físicas.
“As condições de concorrência atingiram um certo grau de equidade, e os varejistas convergentes enfrentam hoje o desafio do conhecimento quase holístico de seus consumidores. Não bastam mais estudos de potencial de mercado, ou preferências no site, mas sim como seu cliente se diverte, compra, reutiliza e conserta seus produtos com o objetivo da hiper personalização.”
Para ele, “o futuro apresenta grandes oportunidades, e o momento exige que executivos mexam as peças desse grande quebra-cabeças da convergência e, com decisões estratégicas certas, criem cada vez mais valor para o futuro”.
Desafios do segundo semestre
De acordo com Aloi, manter-se competitivo é o principal desafio a ser endereçado neste segundo semestre.
“Como crescer sem aumentar a alavancagem? Como gerar caixa e competir num mercado altamente desafiador e competitivo? Conhecer seu cliente com profundidade pode ser um caminho para se relacionar melhor, gerar taxas de fidelidade e recompras mais robustas, que possam sustentar um crescimento orgânico forte.”
Segundo ele, “considerando o cenário de alta competitividade, somado a todos os problemas que as pesquisas mostram sobre a falta de engajamento das pessoas com seus trabalhos e as crescentes taxas de infelicidade com as lideranças”, o processo de desenvolvimento de pessoas passa a ser uma jornada, um organismo vivo, e não mais técnicas prontas que padronizarão as pessoas.
“O momento e o futuro próximo nos mostram que as empresas precisam criar mecanismos de medições de cultura, felicidade, saúde mental e engajamento e conectar esses pilares às métricas e necessidades de cada negócio. Uma grande oportunidade, um grande desafio, uma grande montanha a escalar.”
Márcia Rodrigues, em colaboração para Mercado&Consumo.
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