“A expressão “Com o governo não se briga”, com justa razão, é quase um mantra no setor empresarial. No Brasil e no mundo. Mas isso não deveria significar compactuar, aceitar ou submissão. Especialmente num país como o Brasil, em particular neste momento, quando está sendo redesenhada uma profunda mudança geopolítica e econômica global. Por aqui, tanto precisa ser feito para transformar o País e a realidade com visão estratégica e de longo prazo.”
Estamos vivendo períodos de intensas e profundas transformações geopolíticas e econômicas no cenário global com a crescente importância estratégica da Ásia, liderada por China e Índia, que, sozinhas, representam 37% da população mundial.
Os dois países têm investido massivamente, com a visão de que o protagonismo futuro estará cada vez mais vinculado à liderança nos campos da tecnologia e do digital, sempre combinados com a educação.
A China tem atuado de forma decisiva por meio de projetos como o New Silk Road Initiative 2.0, que integra economias emergentes e em consolidação na região, na África e América Latina.
E com a redução do potencial de crescimento, influência e liderança econômica e política, Estados Unidos, Europa Ocidental e Oriental, envolvidos em seus próprios problemas e conflitos internos, são cada vez mais desafiados pelo futuro iminente redesenhado a partir da Ásia.
No conjunto desses cenários, o Brasil tem condições potenciais únicas para se posicionar e agir. Capitalizando seus ativos, essa constatação por si só já definiria importantes diretrizes estratégicas e de longo prazo para um projeto para o País.
Como parte dessa visão mais abrangente, devemos sempre avaliar o ativo estratégico que representa nossa capacidade de pesquisar, produzir, armazenar e distribuir alimentos, nas condições que podemos e fazemos. E em processo de crescente evolução.
Outro de nossos ativos estratégicos importantes é a baixa idade média de nossa população, se comparada com a realidade global, porém, com aceleração do processo de envelhecimento na fase final de nosso período de bônus demográfico.
Mas devemos considerar igualmente a extensão territorial, os recursos naturais disponíveis e a nossa crescente importância geopolítica, num cenário reconfigurado, com a redistribuição do poder econômico, social, político e tecnológico em processo pela evolução a partir da Ásia.
É sempre fundamental relembrar o ativo representado pelo setor empresarial, que consegue sobreviver e desenvolver negócios em condições adversas, complexas, mutantes e em que predomina a visão estatal curto-prazista.
Por tudo isso, o atual silêncio do setor empresarial não pode e não deve ser aceito, ainda que não se deva brigar com governos, sob pena de mais uma vez comprometermos um momento particular e potencialmente positivo para o País pela pragmática e conveniente acomodação.
A verdade é que poucos líderes empresariais continuam se fazendo presentes por suas manifestações e posicionamentos.
À frente dos negócios predominam executivos altamente preparados para trazer resultados para as empresas que dirigem. E que podem mudar de negócios ou empresas de acordo com as demandas e os atrativos dos desafios, possibilidades e pacotes de compensação.
E com a crescente participação de lideranças desenvolvidas nos mercados financeiros, onde os resultados e o pragmatismo de curto e médio prazos são o que determinam a avaliação positiva ou negativa de seu desempenho. E as compensações.
Nesse ambiente, a visão de futuro do País, seu projeto e execução ficam, cada vez mais, com o Legislativo e o Executivo, que têm na próxima eleição seu parâmetro mais importante de sua realização.
Com isso, vamos delegando o futuro para aqueles poucos que insistem em tentar sensibilizar sobre a repetição dos erros históricos do passado num eterno mais do mesmo.
A visão do mundo em transformação e os novos desafios e oportunidades são privilégios de muitos estudiosos, professores e autores.
A capacidade de avaliar potenciais ameaças e oportunidades, definir estratégias e agir também é de muitos, especialmente executivos com ampla, profunda e sempre atualizada competência para gerar resultados de curto e médio prazos nos negócios sob seu comando, estimulados sempre pela avaliação e remuneração pelo desempenho.
Mas não podemos ignorar que está criado um vácuo institucional que no passado foi preenchido por líderes empresariais com voz ativa e presença constante, trazendo sua visão e capacidade de ação para promover a transformação estratégica do País.
Isoladamente, eles não teriam tido o sucesso que tiveram, mas no seu conjunto ajudaram muito a moldar os inúmeros aspectos positivos que o País possui.
Esse período é especialmente propício, por muitas razões, para o repensar de ciclos, valores, missão, causas e objetivos, em especial no setor empresarial.
Talvez seja válida e saudável a provocação. Sem brigar com governo, quem está cuidando da nação?
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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