Desde que o mundo é mundo, grandes mudanças impactam a sociedade em determinados períodos da história. A agricultura, a invenção da roda, a Idade do Bronze, o período de navegação e de descobrimento dos quatro cantos do planeta, o motor a vapor puxando a Revolução Industrial, a energia elétrica, a internet. Disrupções que chegaram para mudar o status quo e imprimir um novo ritmo ao mundo. E parece que estamos às portas de mais um desses momentos. Se é que já não passamos por elas. A Inteligência Artificial, a tal da IA (ou AI, em inglês), que antes era vista aos montes nos filmes de ficção científica, agora faz parte do nosso cotidiano, seja no trabalho, seja na vida pessoal, mostrando que o “futuro chegou” e virou realidade.
É claro que a Inteligência Artificial não apareceu agora. Ela já está aí faz tempo. Não à toa, o matemático britânico Alan Turing criou o “Teste de Turing”, lá em 1950, tentando responder se as máquinas conseguiriam “pensar”: se um ser humano conversa com uma máquina por cinco minutos sem perceber que ela não é humana, o computador passa no teste. E se o antes eficiente e depois assustador Hal 9000 de “2001: Uma Odisseia do Espaço”, de 1968, com suas falas e polêmicas decisões, era tratado apenas como “coisa de cinema”, anos depois estávamos sentados em nossas salas jogando xadrez contra nossos computadores. Quem não se lembra quando em 1997 o supercomputador Deep Blue, da IBM, venceu o russo Garry Kasparov, então melhor enxadrista do mundo?
Mas, se não é novidade, por que estamos falando tanto em Inteligência Artificial neste momento? “A sociedade sempre foi impactada pela tecnologia e sempre foi se moldando a partir dela: da prensa de Guttemberg ao advento da web. Agora não será diferente. O que vale notar não é o impacto do avanço tecnológico, mas sua velocidade. A adoção das novas tecnologias está tão presente nas mãos de cada um de nós que já usamos machine learning no nosso dia a dia e nem sabemos disso. O que dá para apontar é que a massificação das tecnologias exponenciais como a IA e seus APIs, com todas suas possibilidades criativas, estão neste momento passando um giz no chão da história, marcando uma espécie de antes e depois deste advento tecnológico”, afirma Ulisses Zamboni, chairman e sócio-fundador da Agência Santa Clara, conselheiro e advisor nas áreas de Marketing e Gestão.
Enquanto a Inteligência Artificial ficou de certa maneira escondida, restrita a determinadas ocasiões e produtos, aos filmes e a atividades específicas, o mundo reagia de uma forma. A partir do momento que a IA escalou e entrou no cotidiano de cada um de nós, em áreas distintas, em momentos distintos, permeando nossas atividades de dia a dia, muitas vezes até sem que percebamos, a coisa mudou de figura. “Toda inovação tecnológica precisa ter um ‘colchão cultural’. Ela precisa estar diretamente conectada com aquilo de que as pessoas precisam. E a Inteligência Artificial hoje está. O ChatGPT tem uma conexão com as nossas necessidades culturais e é por isso que funciona. A IA vem dando certo, porque ela está conectada com as nossas necessidades, com aquilo de que a gente precisa”, revela o antropólogo Michel Alcoforado, sócio do Grupo Consumoteca.
Para uma disrupção acontecer a ponto de ficar gravada nos livros de história, não basta apenas a novidade chegar a galope. É preciso que a sociedade esteja preparada para tal. E, no tocante à Inteligência Artificial, parece finalmente termos chegado neste ponto. Principalmente após a pandemia de covid-19.
“Acabamos abrindo uma porteira maior para a invasão da tecnologia em nossas vidas. Se não fosse o período de pandemia, estaríamos problematizando mais sobre os riscos e os contras da Inteligência Artificial. O que a pandemia fez com boa parte dos consumidores, por exemplo, foi impor determinados comportamentos. Compras online, cartão de crédito, Pix. Gente que nunca tinha comprado online começou a comprar online. Gente que nunca tinha colocado cartão de crédito no celular agora sai de casa sem a carteira. Por conta disso acredito que a IA ganhou um lugar mais fácil de adaptação e de impacto no nosso dia a dia e no nosso mundo”, completa Alcoforado.
Invadindo o mercado
Se a Inteligência Artificial já é uma realidade para o cotidiano da atual sociedade, obviamente isso inclui também o varejo e o consumo. Empresas de todas as áreas e segmentos estão usando a tecnologia para melhorar de alguma forma o desempenho em toda a sua jornada, no atendimento a clientes e colaboradores, na produção e na operação do core do negócio, na logística ou até mesmo na agenda ESG.
O Burger King, por exemplo, lançou em meados de 2023 no Brasil o sistema Sentinella, uma ferramenta baseada em Inteligência Artificial que ajuda a tornar mais ágil e eficiente toda a cadeia logística, evitando desperdício de alimentos nos restaurantes e otimizando a operação. O sistema cruza dados da base de pedidos realizados pelos consumidores por meio do controle de estoque para entender quais insumos são mais utilizados em determinada loja. Ao consultar o sistema, o gerente já recebe as sugestões específicas para a reposição daquele estoque. “A ideia é levar a melhor informação possível baseada no comportamento da loja, no perfil daquele consumidor específico, levando para aquele local a mercadoria necessária exatamente para aquele público, evitando a falta ou o desperdício do nosso produto”, revela Igor Freitas, VP de Tecnologia da Zamp, empresa responsável pelos restaurantes da rede Burger King no Brasil.
Já a TIM, operadora de serviços de telefonia, tem investido em tecnologias avançadas de atendimento ao cliente, como a “Tais”, assistente virtual criada em 2020 responsável por atender aos consumidores da empresa. “O consumidor espera, cada vez mais, uma experiência de atendimento de qualidade. Existem vários recursos sendo aplicados para aperfeiçoar o relacionamento com o cliente, e acreditamos que, cada vez mais, surgirão soluções para incrementar este trabalho. O consumidor, por outro lado, espera isso das empresas, que a tecnologia ajude a entregar um serviço ainda mais eficiente. Com o uso da IA generativa, esperamos melhorar ainda mais a compreensão e as respostas aos clientes, impulsionando a eficiência do atendimento sem necessidade de trabalho manual intensivo. Curadoria e comunicação contínua são essenciais para melhorar o atendimento”, afirma Auana Mattar, CIO da Tim Brasil.
No B2B, o Compra Agora, que é um marketplace que tem como foco resolver a vida do varejo de vizinhança, tem a Inteligência Artificial como parte do negócio desde sua criação, em 2020. Se no início a construção do Data Platform olhava para o “passado” visando organizar todos os dados em um único lugar para facilitar a consulta, agora a plataforma já consegue realizar uma construção mais preditiva. “Antes de divulgar qualquer tipo de campanha promocional, olhamos o histórico e passamos por alguns modelos para dizer se aquela campanha vai ter retorno ou não. Utilizamos os dados do próprio Compra Agora para fazer isso acontecer. Também estamos usando um simulador para impulsionar o carrinho perfeito. Sabendo as várias compras que o varejista fez ao longo dos meses no site, montamos estratégias e sugestões. A meta é conseguir, um dia, antecipar totalmente o carrinho para o cliente”, revela Thaise Hagge, diretora-geral do Compra Agora.
A executiva garante que vem muito mais por aí. “Vamos desenvolver mais produtos de dados para ajudar as indústrias. Imagine que uma empresa queira crescer em algum determinado Estado. Vamos ser capazes de dizer quais são as principais fontes, os municípios em que pode atacar com mais força, onde vai conseguir recuperar seu investimento mais rápido. Também enxergamos um potencial enorme no WhatsApp como plataforma para ferramentas de predição – tudo na mão do lojista e do varejo. Ao utilizar esse canal, os varejistas têm a facilidade de realizar todo o processo de compra, desde a seleção de produtos até a verificação de listas sugeridas e promoções, tudo de forma integrada e intuitiva, consolidando, assim, o compromisso da plataforma em fornecer soluções inovadoras para o setor varejista”, completa Thaise.
Os exemplos são inúmeros. No serviço, na indústria ou no foodservice. A Inteligência Artificial é uma realidade, na sociedade e no mercado. Mas no varejo ainda existe bastante espaço para crescer. Uma pesquisa divulgada pela Linx, empresa especialista em tecnologia para o varejo, em novembro de 2023 apontou que apenas 16% dos profissionais do setor utilizam Inteligência Artificial na gestão de seus negócios. “Perder esse ‘trem da IA’ é como deixar passar a revolução do século. As empresas que não aderirem correm o risco de ficarem presas em métodos ultrapassados, perdendo a chance de inovar e se destacar. Imagine tentar competir no mercado moderno sem as vantagens que a Inteligência Artificial oferece? Quem ficar para trás poderá enfrentar desafios sérios na adaptação e, consequentemente, perder competitividade”, alerta Rony Meisler, sócio-fundador da Reserva, marca brasileira de moda.
“Acredito que a IA tem o potencial de ser o maior transformador do comportamento e da experiência do consumidor nas últimas décadas. Estamos falando de uma revolução que vai além de simples automações. A capacidade da Inteligência Artificial de personalizar serviços, antecipar necessidades e criar experiências únicas para os consumidores é algo extraordinário. Quem souber incorporar isso de maneira inteligente vai se destacar nesse novo cenário empresarial”, garante Meisler.
Dilemas de IA
Avanço, melhoria, desenvolvimento, crescimento, evolução. São palavras que estão associadas às tais disrupções pelas quais o mundo passou durante os últimos séculos. Mas será que essas mudanças tão impactantes não representam, também, preocupações? Sem dúvida. Com a Inteligência Artificial não poderia ser diferente.
“Existe um caminho que é o principal e para o qual olhamos pouco, que é como a tecnologia tem provocado uma aceleração da passagem do tempo. Uma vez me falaram que ‘tecnologia é tudo aquilo que te permite fazer a mesma coisa em menos tempo’. É por isso que amamos o ChatGPT, o celular, a máquina de lavar. Porque estamos lidando com coisas que nos ajudam a fazer as mesmas coisas que fazíamos no passado em um menor tempo possível. Mas quando começamos a acelerar as coisas que fazíamos, começamos a fazer algo que os filósofos chamam de ‘colocar mais ação na mesma unidade de tempo’. Nós vamos fazendo mais coisas dentro da mesma unidade de tempo. Por isso que há essa sensação de que o tempo está mais acelerado. Mas qual é o problema? Quando fazemos isso, o ritmo de transformação da sociedade muda para uma velocidade maior. E aí tudo aquilo que eu aprendi ontem não serve mais para o amanhã”, revela o antropólogo Michel Alcoforado.
“A tecnologia é ótima para resolver inúmeras coisas. Mas ela também tem esse rastro negativo de aceleração do tempo e das mudanças sociais que provoca um desafio enorme para nós em um mundo que vai mudando a uma velocidade maior do que somos capazes de aprender”, completa Alcoforado.
Segundo o antropólogo, outro ponto que a Inteligência Artificial vem transformando no ser humano é na relação com a morte. Se antes, ao enterrarmos um ente querido ou acompanharmos o velório de uma celebridade, virávamos uma página e seguíamos adiante sem essas pessoas no presente, mas com elas em nossas memórias, hoje o processo está bem diferente, principalmente diante da evolução do “deep fake” e o que já nos foi apresentado sobre a capacidade da IA e “ressuscitar” pessoas por vozes, imagens ou texto.
“Estamos começando a olhar para a morte de uma outra forma. E permitir que pessoas que já morreram continuem ‘vivas’, interagindo com a gente. Grandes artistas ou personalidades continuam com seus perfis em redes sociais mesmo depois de mortos. Fazendo postagens como se ainda aqui estivessem. É importante falar que nós mudamos a ideia de corpo, por isso tudo isso está sendo tratado como normal. Você sai de um corpo ‘máquina’, físico, para um ‘bit-corpo’. Mais do que um corpo de carne e osso, viramos imagem. E, se viramos imagem, mesmo que o corpo desapareça com a morte, podemos continuar existindo. Essa imagem está atrelada a tudo que deixamos nesse mundo de voz, vídeos e fotos. São pegadas digitais que podem ser usadas para continuarmos existindo mesmo depois da morte”, revela Alcoforado.
Novo consumidor?
Será que todas essas mudanças pelas quais a sociedade vem passando em relação à tecnologia vão acabar impactando o consumidor? Será que teremos um novo comportamento de clientes envoltos em um novo mundo de possibilidades? “A Inteligência Artificial vai mudar a forma como compramos, vendemos e interagimos com clientes e fornecedores”, garante Carlos Carvalho, CEO da Truppe, empresa especializada em transformação digital e inovação. “Talvez a maior transformação de comportamento já tenha vindo com o e-commerce, tirando os consumidores das lojas, levando para o ambiente online e gerando mais facilidade para as compras”, completa o executivo.
Será então que já é hora de cravar que a Inteligência Artificial será o maior transformador do comportamento e da experiência do consumidor das últimas décadas? Com a palavra, Eva Lazarin, fundadora da Benkyou e membro da Associação Brasileira de Inteligência Artifical (ABRIA). “Essa reflexão se dá não só do lado do poder do consumidor, que inegavelmente será potencializado. Mas também sob o prisma de ele não ser levado a bolhas de consumo, ou se deparar com alucinações da Inteligência Artificial, quando a IA inventa coisas a partir de parâmetros mal combinados. Ou do quanto a Inteligência Artificial irá transformar a empregabilidade das pessoas ou influenciará na geração e distribuição de renda. Pessoas com menos renda têm menos acesso a qualquer tecnologia, inclusive IA. Pessoas de alta renda, comprovadamente, são mais racionais, logo podem consumir menos. Os próximos anos serão bem interessantes. Ou melhor, os próximos meses”, destaca Eva.
Mas é importante lembrar que, mesmo com o maior avanço tecnológico possível (ou “impossível” até provarem o contrário), o fator humano segue sendo fundamental na sociedade como um todo, principalmente no mercado. “Acreditamos que o consumidor espera, cada vez mais, uma experiência de atendimento de qualidade. Existem vários recursos sendo aplicados por aqui para aperfeiçoar o relacionamento com o cliente e acreditamos que novas soluções surgirão para incrementar este trabalho. O consumidor espera isso das empresas. Que a tecnologia ajude a entregar um serviço ainda mais eficiente. E a combinação de ferramentas e trabalho humano é o que pode fazer a diferença”, garante Auana Mattar, CIO da Tim Brasil.
O fundador da Reserva compartilha da importância em manter a humanidade no jogo neste novo momento do consumidor. “Mesmo com todo esse avanço tecnológico, não podemos perder a humanização. É fundamental manter a empatia, o toque pessoal, o ‘calor humano’. Integrar a tecnologia de forma ética e centrada no ser humano é o segredo para não nos perdermos nesse mundo digital. É uma questão de equilíbrio entre a eficiência da tecnologia e a essência humana. Essa combinação é o que vai garantir um futuro sustentável e conectado”, revela Rony Meisler.
Podem ser as caravelas, a roda, o bronze, a agricultura, a internet, os motores, a energia elétrica, a Inteligência Artificial ou aquilo que virá daqui para frente. Isso tudo mudou, muda e continuará mudando o mundo e moldando eras. Cada qual em seu tempo e no seu tempo. Mas sempre com a participação fundamental do ser humano.
Direitos e deveres
Todos os momentos disruptivos que atingem uma sociedade acabam vindo acompanhados de novas regras e novas responsabilidades. Algo como que para nortear um mundo desconhecido que chegou para fixar raiz, estejamos preparados ou não para ele.
“O progresso tecnológico traz consigo transformações significativas no mercado, redefinindo as operações e interações das instituições com seus clientes, proporcionando experiências integradas e personalizadas. No entanto, para que essas experiências sejam legalmente válidas, é imperativo adotar medidas que visem garantir a segurança e a privacidade dos cidadãos. Esse cenário apresenta desafios para organizações que buscam utilizar dados pessoais de maneira ética e segura, sem violar as legislações aplicáveis. Nesse contexto, a revisão e atualização das leis existentes se tornam essenciais. É necessário garantir que as regulamentações vigentes sejam pertinentes e aplicáveis ao ambiente tecnológico em constante evolução. Além disso, a criação de legislação específica para lidar com questões emergentes, como a proteção da privacidade online e a regulamentação da Inteligência Artificial, pode ser necessária”, revela Antonielle Freitas, advogada sócia do escritório Viseu e responsável pela área de Proteção de Dados.
O avanço da Inteligência Artificial traz novos direitos e novos deveres para a sociedade como um todo, principalmente na proteção dos dados das pessoas, que serão cada vez mais usados para alimentar a tecnologia que permeará o cotidiano de todo o planeta. Desde a transparência, passando pela permissão para a coleta das informações, até a salvaguarda dos dados coletados. No Brasil, ainda não se tem uma lei específica para a IA. Mas o País já está mirando a Europa, assim como fez com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), publicada em 2018, mas vigente desde agosto de 2020.
“Já temos um processo pioneiro de regras para Inteligência Artificial na Europa. Eles foram pioneiros nas leis de dados também e estão sendo na regulamentação da IA. No Brasil, conforme o tema vai ganhando relevância, você vai ter a criação de um marco legal para Inteligência Artificial. E que provavelmente vai envolver também a criação de um agente regulador específico. Uma autoridade que vai regulamentar o setor, criando as regras, supervisionando, aplicando sanções”, revela Marcelo Padua Lima, sócio na Cascione Advogados.
Lima garante que, até uma legislação específica ser criada, ninguém está desamparado pela lei. “É importante deixar claro que, independentemente de se ter a lei específica, não significa que vale tudo. Afinal temos leis gerais que podem ser aplicadas. Pelo Código Civil, por exemplo, se você causou danos por mau uso de IA, quem sofreu o dano pode pleitear uma indenização. Se isso afeta o direito do consumidor, você tem as leis do direito do consumidor. Se isso interfere em privacidade, você tem a LGPD. Isso não está no vácuo, mas o caminho é a criação de fato de uma lei, de uma regulamentação específica mesmo. Assim fica tudo muito mais controlado e supervisionado. Essa é a tendência”, revela o advogado.
Imagens: Shutterstock