A letargia durou mais do que deveria, mas finalmente acordamos e descobrimos que o “fenômeno” das bets, ou jogos eletrônicos de azar, não é um passatempo inofensivo, mas sim garantia de pesadelo.
É verdade que não só no Brasil pois a nova epidemia tem se alastrado pelo mundo e acaba envolvendo países, governos e principalmente a população mais jovem, de menor poder aquisitivo e iludida com a perspectiva do ganho fácil.
Nosso primeiro artigo sobre o tema foi em 5 de agosto, com o título “Bets impactam emprego e vendas no comércio e no varejo”. Nesse complexo ecossistema a única garantia é que o “jogador-consumidor” é o único que não vai ganhar no negócio por ser o elo mais vulnerável nessa cadeia comandado pelas empresas envolvidas com bets e com uma parcela do dinheiro arrecadado enviada para fora do país.
É matemático. E se fosse diferente não seria um negócio tão interessante para motivar 134 empresas a se cadastraram e depositaram R$ 30 milhões cada uma para se habilitarem a participar desse mercado.
No dia 19 de setembro passado, durante o Latam Retail Show 2024, 16 entidades nacionais ligadas aos setores de consumo, comércio, indústria e varejo, pela primeira vez se alinharam para divulgarem um manifesto mostrando o preocupante quadro que havia se instalado e propondo de forma objetiva medidas que regulassem e disciplinassem o crescimento dos jogos eletrônicos de azar.
Até então o tema vinha sendo tratado de forma superficial, especialmente no âmbito do governo federal, mais interessado em obter algum recurso adicional em depósitos para habilitação e impostos a serem coletados, ainda que inferiores em alíquotas ao cobrado de fumo e bebida, com danos potenciais similares.
E ignorando também os impactos perversos das bets na saúde mental da parte mais vulnerável da população, os riscos comprovados e envolvidos no crescimento descontrolado e até mesmo o desvio de finalidade dos recursos destinados ao Bolsa-Família/Auxílio Brasil, como foi comprovado e quantificado em seguida pelo Banco Central.
O Vice-presidente e Ministro da Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, presidente em exercício na oportunidade, sensibilizado pelo manifesto e a representatividade das entidades envolvidas, na segunda-feira seguinte, dia 23 de setembro, recebeu representantes dos que assinaram o manifesto e se inteirou das dimensões e consequências da “epidemia” das bets. Ele então se comprometeu a reunir representantes dos ministérios da Fazenda, Saúde, Comunicações e Justiça para um alinhamento no âmbito do próprio governo.
O tema tornou-se dominante na mídia não comprometida com as bets, no âmbito de outras entidades que se propuseram a integrar o grupo original do manifesto, incluindo a representante do setor financeiro, também em algumas alas no próprio Governo e no Congresso, sensibilizados pelo quadro de contaminação pela atual “epidemia”.
Na prática o país acordou e se deu conta da gravidade do pesadelo e suas consequências abrangentes e uma certa racionalidade começou a se manifestar de forma a criar mecanismos que inibissem que o lado mais danoso da “pandemia” se alastrasse ainda mais.
A quantificação do redirecionamento dos auxílios à população mais desassistida produzida pelo Banco Central talvez tenha sido um dos fatores decisivos no acordar da letargia aliada às pesquisas que comprovavam o maior envolvimento dos mais jovens e das classes mais baixas e que sinalizavam o nível de contaminação.
O tema tomou dimensão proporcional ao dano potencial e a mobilização vai ensejar maior nível de controle na comunicação, na promoção, no uso do cartão de crédito e outros estímulos para jogos. E no reposicionamento da visão idílica que foi criada e que contou com a omissão das autoridades e ensejou a expansão descontrolada e agora em processo de reversão.
Outra lição importante
De todo o processo ficou outra lição relevante a merecer reflexão e que envolve a corresponsabilidade dos setores privado e empresarial com os temas nacionais, em defesa do que é mais estratégico e fundamental para a Nação e para muito além dos interesses econômicos de curto prazo.
A mobilização e alinhamento de entidades nacionais dos setores do comércio, indústria, consumo e varejo e seu posicionamento público contribuíram de forma decisiva para resgatar o mínimo de bom senso que deveria ter sido considerado em todo o processo. E que foi atropelado pelo interesse financeiro imediato, desprezando outras indesejáveis consequências.
E assim deveria sempre ocorrer. Quando são os valores, o futuro e o estratégico da Nação que estão sob ameaça é preciso destemor e iniciativa para se posicionar contra a voz comum, o interesse imediato e dominante e propor caminhos e ações, para além de apontar problemas.
Que o episódio das bets, muito longe de estar equacionado, mas que pelo menos gerou consciência, mobilização e alguma ação, seja o estímulo e exemplo permanentes para o maior e mais pragmático engajamento dos setores empresarial e privado do País, pois, na prática, toda a conta será paga, direta ou indiretamente por esses setores.
Vale a reflexão.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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