Mais ambicioso e também possivelmente prematuro, é bom aproveitarmos a intensidade e profundidade das experiências e vivências precipitadas por este momento único em nossas vidas, nas suas dimensões individual, profissional e empresarial, para especularmos sobre os aspectos que deverão ser incorporados em nossa realidade.
É sabido que as empresas, a organização e os modelos de gestão já vinham em constante e acelerado processo de transformação por conta do efeito combinado da evolução da tecnologia, dos novos modelos nascidos e derivados do ambiente digital. Também era relevante a evolução da presença das novas gerações como consumidores e como profissionais nas empresas, com suas características comportamentais e atitudinais e, por fim, os desafios de um mercado hipercompetitivo e hiperconectado.
Como seria natural, as empresas, os modelos de organização e de gestão, vinham incorporando essas novas realidades e se adaptando às mudanças em velocidades distintas e ditadas pelo macro-ambiente e a capacidade de reação.
Vivíamos uma realidade em que conviviam, ao mesmo tempo, modelos de empresas, organização e gestão mais Tradicionais num vetor, junto com as chamadas Plataformas Exponenciais, aqueles desenvolvidos por Google, Amazon e outras e, num outro vetor, os Ecossistemas de Negócios nascidos na China e representados por organizações como Alibaba, Tencent, Didi e muitos outros.
Cada um com suas características e todos em constante mutação por conta do ambiente e do mercado metavoláteis.
Mas de uma hora para outra, todas e todos são atropelados pela espiral transformadora precipitada pela combinação da pandemia exponenciada pelo tsunami econômico-financeiro e outros efeitos mais, nos planos político e social.
A combinação desses elementos em toda sua intensidade, profundidade e amplitude deverá gerar mudanças estruturais nos modelos de negócios, nas empresas, nas organizações e na gestão de forma mais abrangente pelo que já se pode observar.
Eis alguns dos elementos que farão parte dessa nova realidade, em maior ou menor intensidade.
1 – A transformação estrutural do espaço e do local de trabalho. Se tem uma coisa que vai mudar para nunca mais voltar a ser o que foi no passado é a questão do local e do espaço de trabalho. Gostemos ou não, para o bem ou para o mal, nossa percepção coletiva sobre tudo que envolve decisões sobre espaço e local de trabalho mudarão de forma marcante. Obrigatoriamente aprendemos que o que tínhamos antes pode e deverá ser diferente.
O home office que nasceu como proposta combinada de redução de custos e benefício para alguns, foi alçado a uma condição radicalmente diferente por conta do que estamos vivenciando. Para alguns, a descoberta da viabilidade, facilidade, conveniência e produtividade. Para outros a natural dificuldade e os problemas decorrentes da impossibilidade pela ausência de infraestrutura e condições práticas.
Para alguns, muito pouco em termos relativos, o espaço dedicado em casa cria uma combinação virtuosa de fatores como menor tempo em deslocamentos, mais concentração e conveniência. Especialmente quando não for obrigatório.
Para outros, a maioria, pode ter algumas vantagens claras, mas muito terá que ser reprogramado para ser mais interessante.
E para outros ainda, o ambiente tradicional de trabalho é uma forma de fugir às inúmeras restrições das condições difíceis e restritas onde moram.
Mas está aberta a temporada de repensar demandas de locais e espaços afetando o mercado imobiliário comercial e residencial e novos projetos, talvez, com áreas coletivas em ambiente de coworking em prédios residenciais, devidamente equipados.
Em verdade, essa dinâmica já é realidade em muitas empresas de tecnologia por conta da natural familiaridade com ferramentas digitais e, acima de tudo por escassez de mão de obra qualificada, obrigando essas empresas ao recrutamento de pessoas em âmbito global para ter acesso às suas competências.
Vale lembrar que estamos apenas poucos dias reclusos e já passamos a valorizar a importância da socialização e do trabalho em grupo e acreditamos que, na sua evolução, mais empresas adotarão o home office e reuniões ou debates virtuais, mas aprenderemos a dar ainda mais valor para a produção e o tempo conjuntos. Mas que vai mudar muito, isso vai!;
2 – Vai horizontalizar muito mais. Os modelos mais tradicionais de organização, com inspiração na hierarquia militar, e seus reflexos na gestão, foram construídos dentro da visão piramidal e, com o tempo, foram sendo horizontalizados para reduzir a distância entre a cúpula e a base dentro das empresas e, principalmente, aproximar todos da organização de seus clientes finais.
No mercado hipercompetitivo que caracteriza o passado recente, o presente e ainda mais no futuro DC, essa conexão mais intensa, constante e direta com todos os níveis e com o mercado, será cada vez mais crítica e toda a organização e seus modelos de gestão devem privilegiar essa conexão mais próxima.
Para isso as organizações deverão pensar sua cultura, estruturas e canais de relacionamento, internos e externos, tendo como objetivo essa maior proximidade de forma permanente e a horizontalização será um dos instrumentos para que isso aconteça.
Sempre lembrando que as empresas ligadas à nova economia já trabalham com estruturas organizacionais alternativas há algum tempo, sendo que o método ágil é o formato que vinha sendo mais adotado por organizações como Spotify, Netflix, Google, Facebook, Nubank e Luiza Labs;
3 – Metadigital. Filhos surpreendem-se com pais, mais idosos, desenvolvendo habilidades desconhecidas de compras pela internet. Pais se surpreendem com filhos com competências digitais desconhecidas pela falta de convívio mais intenso.
Se tem algo que esse período tornou flagrante e impactante é o quanto o digital já condiciona nossas vidas. Nada diferente de todos os discursos até então, mas muito mais intenso, decisivo e tentacular quando vivenciamos essa nova realidade que nos foi imposta pelas circunstâncias. E que está nos fazendo pensar como podemos levar cada vez mais tudo isso, de forma positiva, para o ambiente profissional e empresarial, para também não dizer no familiar.
Muitos de nós estão desenvolvendo competências adicionais no uso de aplicativos, plataformas, sites, entretenimento, ferramentas e muito mais. Está sendo um mestrado full time em Cultura Digital Compulsória. Mas na evolução do processo muito do que foi aprendido, praticado e fomos sensibilizados, será levado para as organizações através de novos modelos, práticas, recursos, ferramentas e principalmente cultura.
Sem percebermos, sairemos desse obrigatório mestrado com título de Metadigital, ou seja, nossa vida mudou, nesse caso, para melhor, pelo que nos demos conta, aprendemos e convivemos com os benefícios do digital. No retorno ao novo normal, em algum momento futuro, as organizações deverão incorporar os benefícios dessa nova realidade, onde empresas de todos os portes revisarão e priorizarão sua estratégia digital de forma ampla, repensando canais, comunicação e distribuição e, até mesmo aquelas empresas que não tinham esse tema em sua agenda darão prioridade à sua reconfiguração.
Não há dúvidas que esse se tornou um caminho sem volta;
4 – O paradigma da Comunicação Multitransversal. No meio do cataclisma que se abateu sobre todos, nos demos conta de que não basta comunicar-se de forma constante por todos os veículos possíveis. Nos demos conta também do quanto o excesso de informação pode criar, acreditem, distanciamento. Do quanto o FOMO – Fear of Missing Out, sentimento que estamos perdendo alguma coisa, pode criar ansiedade, irritação e culminar até com alienação.
De outro lado fica claro que os líderes, colaboradores, funcionários, clientes, fornecedores e parceiros precisam ter acesso ou receber a informação certa, na hora certa e na dose correta já que o isolamento, compulsório como o atual, gera natural ansiedade sobre quase tudo. Multiplicaram-se as alternativas e todos querem comunicar tudo para todos. E poucos se dispõem a ouvir de fato e com atenção o que precisa ser dito por quem quer e precisa de ajuda. E, de forma geral, entendemos que sabemos o queremos comunicar e na ânsia de fazê-lo, nos esquecemos de ouvir.
Em todo esse processo novos instrumentos, métodos, linguagens e atitudes no meio digital têm sido usados, multiplicando alternativas para a comunicação com os públicos interno e externo e permitindo mensuração imediata de retorno, destilando o que podemos chamar da Comunicação Multitransversal nas organizações, aquela que combina elementos mais eficazes para obter retorno no meio da Babel institucionalizada que se criou.
Esse aprendizado, incluindo a relevância da curadoria de conteúdo será em boa parte incorporado, passada a crise, na maneira como as empresas e negócios se relacionarão com os públicos interno e externo;
5 – Pensar Ecossistema. No caos fez-se a luz. E muitas organizações e negócios se dão conta que atuam em ecossistemas, mais próximos ou mais distantes do epicentro gerador de energia, de recursos ou de inovação.
Além dos modelos de organização nascidos na China, estamos nos dando conta que a organização social maior é toda ela estruturada em Ecossistemas. E podemos estar mais próximos ou mais distantes do núcleo de cada um desses ecossistemas. E quanto mais rápida e estruturada for a constatação de nossa visão sobre essas inter-relações e conexões no ambiente de negócios e na sociedade, mais ambiciosa e visionária poderá ser a reconfiguração de nossas atividades.
Uma empresa de planos de saúde é parte de um ecossistema maior que envolve tudo que diga respeito à saúde de um país. Mas pode ser epicentro de um sub-ecossistema que integre outros benefícios, medicamentos, serviços e bem estar, atividades físicas, informação e, porque não, até pagamentos.
Da mesma forma que uma rede de fast food, com suas milhares de lojas e interação constante com seus consumidores e fornecedores, é parte do ecossistema maior de alimentação do país, mas também pode ser um sub-ecossistema que integra fornecedores, outros benefícios, serviços, entregas e atividades de consumo e até mesmo, também, pagamentos;
6 – Participação para a Transformação. O caos nos aproxima e a fragilidade nos torna mais iguais. Ainda que tenhamos todos entrado no turbilhão do presente com níveis, hierarquia, posses e visões segmentadas e estruturadas, vamos todos sair disto mais iguais e mais próximos.
Mais do que “wishful thinking”, os fatos e as contingências do presente desenham a realidade futura, mais do que a perspectiva, de que como pessoas, dirigentes, profissionais, empreendedores e empresários, nós e nossas organizações, sairão, necessária e culturalmente diferentes de toda essa experiência.
E um dos motes, talvez mais importante nesse contexto, é que deverá crescer o desejo de participar mais, do lado dos colaboradores, e a necessidade de integrar, envolver e ter maior participação de todos, por parte das organizações. A complexidade da vida, da sociedade e dos negócios atuais pressupõe modelos de organização e gestão onde a participação se torne mais intensa e constante para facilitar o entendimento, busca de soluções e integração e velocidade de implementação;
7 – A emergência da organização PAS – Plural, Aberta e Social. Na sua versão mais singela, há males que vem para o bem. E o que temos acompanhado no mundo e no Brasil é uma tomada de consciência, compulsória, de que as empresas e os negócios devam se ater muito mais em sua existência à incorporação de atitudes que envolvam uma forma mais Aberta em sua atuação, uma maior preocupação com o Social e, para isso, devam ser mais Plurais em sua forma de ser e agir.
Não há como negar que essa era uma demanda que vinha se expandindo, em especial pela atitude e posicionamento das novas gerações.
E agora, sob intensa e desmedida pressão, estão se sobressaindo aqueles negócios, empresas e marcas que já tenham esses vetores mais presentes em sua proposta estratégica e relacionamento interno e externo.
Estão emergindo quase que naturalmente, aqueles que em seu DNA tinham e têm presentes esses elementos e o resultado futuro disso deverá ser uma identidade mais positiva e relevante com o mercado e seus stakeholders;
8 – Pés no presente e olhos no futuro. Passado o caos dos primeiros momentos, onde o estupor sobrepôs-se a tudo e as reações básicas foram as de sobrevivência, privilegiando saúde, no plano pessoal e dos colaboradores, e caixa no plano empresarial, no momento seguinte, começou a busca pela luz no fim do túnel.
Visualizada a luz, começou o esforço para chegar até lá, limitado pela percepção que muito, muito mesmo, como jamais imaginamos antes, não depende de nós, mas está comandado pelo acaso e pelas circunstâncias.
Mas o sentimento que emerge é que, como nunca antes, é preciso estar com os pés no chão, porque a realidade isso impõe, mas levantar os olhos para o futuro pois, mais cedo ou mais tarde, irá chegar.
E que isso seja parte do novo normal, diferente do cenário recente onde deformações em modelos de negócios, valores, imediatismo e conceitos, vinham sendo atropelados pela espiral tecno-digital criando uma realidade desconexa em muitos aspectos.
Como atitude de líderes que irá emergir ainda forte de todo esse processo a necessária visão dual, de manter os pés firmes e sólidos no presente, porque a realidade a isso nos obriga, mas não tirar os olhos do futuro porque, mais do que necessário, é uma forma de equilibrar nosso próprio comportamento, pressionado em sua confiança pela dimensão dos desafios a serem enfrentados.
Não há muitas dúvidas que as organizações que conseguirem passar pelo cataclisma, seus líderes e dirigentes, irão emergir para uma nova realidade onde valores, percepções e visões do passado serão necessariamente reconfigurados como resultado da intensa e profunda experiência vivida no presente.
NOTA: o artigo desta semana também tem o apoio dos líderes de negócios da Gouvêa que se mobilizaram para compartilhar uma visão do presente e, principalmente, do futuro do varejo e do consumo como forma de contribuir com reflexões para apoio de nossos clientes e parceiros.
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