O crédito ao consumo no Brasil é diferenciado pelo envolvimento direto e a participação das empresas varejistas na sua concessão, tornando o País um benchmarking global nesse aspecto.
Na Via, antiga Via Varejo, que opera Casas Bahia e Ponto, ex-Ponto Frio, são 95 milhões de crediaristas na base. Na Riachuelo, são mais de 32 milhões possuidores de seu cartão de crédito, bandeira própria, que respondem por perto de 42% de sua venda total. Carrefour, Pão de Açúcar, C&A, Pernambucanas, Renner, Marisa e Americanas, para citar apenas algumas, também têm alta representatividade em suas vendas dos clientes de seu crédito, tradicional ou via cartão com bandeira própria em seus negócios.
A história recente do crédito para o consumo no Brasil talvez possa ser dividida em algumas fases.
No período que foi até 2003, o varejo se diferenciava por sua organização e agressividade na estrutura e oferta do crédito próprio, que permitia que criasse vantagem competitiva e rentabilidade incremental pela competência na gestão. O crédito ao consumo representava, na média, até 80% das vendas nas categorias de compra comparada.
Nesse período, o varejo mais organizado era o principal player nessa modalidade e usava o sistema financeiro para alavancar seu negócio – o que, em vários momentos, trazia mais resultado do que a operação comercial pura.
Pela diferença de taxas praticada nos recursos próprios e naquele tomado junto a bancos, e o índice cobrado, era uma operação muito interessante e estratégica e muitas empresas varejistas montaram financeiras próprias para melhor estruturar todo o negócio. Algumas até bancos comerciais criaram.
Era uma operação de alto risco por conta da inadimplência e das variações inflacionárias que, junto com a questão tributária, elevavam muito o custo do crédito e as taxas praticadas. Mas o resultado compensava. E muito.
Mas algumas empresas, por circunstâncias diversas, ficaram pelo caminho por conta de descasamento das operações do crédito ao consumidor e da flutuação das taxas de juros na tomada de recursos junto ao sistema financeiro.
Na fase seguinte, de 2004 a 2013, fase do boom do consumo e do varejo, o sistema financeiro avançou para a compra ou integração de carteiras e negócios do crédito do varejo.
Foi um período em que muitas organizações varejistas venderam ou se associaram aos bancos, que pagaram muito para entrar no negócio. Poucas mantiveram sua independência no período e o recurso aportado foi direcionado para a aceleração da expansão das lojas físicas.
Passada a euforia do crescimento do consumo veio a conta, com a forte expansão da inadimplência, que gerou resultados indigestos para quem foi com muita sede ao pote. Vários bancos amargaram resultados negativos por causa da volúpia com que entraram no negócio quando o mercado perdeu vigor e crescimento.
Na fase seguinte houve a depuração de todo o processo com redistribuição de responsabilidades e, da crise de 2016 em diante, a maioria das empresas varejistas já não podia contar com o crédito como elemento alavancador das vendas, pois na lógica financeira ele não era um meio, mas um fim em si mesmo.
Poucas foram as redes que tiveram a condição de se diferenciar e promover alavancagem das vendas por terem mantido a autonomia nas decisões sobre crédito aos seus clientes.
Em um país com alto nível de desbancarizados, o crédito tem papel crítico para o varejo e é emulador de consumo, ao mesmo tempo em que é um instrumento de diferenciação e fidelização do cliente, criando um forte vínculo com a marca quando este consumidor tem uma linha aprovada.
É muito mais simples uma nova compra quando já se tem crédito do que se submeter ao processo de aprovação em uma nova rede.
No início da crise gerada pela pandemia, a partir de março de 2020, o crédito ao consumo das famílias no Brasil representava 28% do PIB, enquanto em economias similares ou maiores esse percentual oscila entre 50% e mais de 100%. Essa situação só é explicada pelas taxas praticadas, pela concentração do sistema bancário – os maiores bancos representam mais de 80% de todo o crédito do País – e pela antiquada e defasada estrutura tributária.
Na realidade atual, apesar da pequena redução das taxas reais de juros praticadas no crédito ao consumo, existe a real perspectiva de redução da concentração no crédito diante do surgimento de novas opções e novos players, incentivados e apoiados pelo Banco Central, o que poderá ser um forte alavancador do consumo no Brasil à medida que isso favoreça a redução de taxas e o mais amplo acesso à população. Especialmente à da baixa renda.
Por conta dessa realidade, no processo evolutivo dos Ecossistemas de Negócios Made in Brazil, as organizações varejistas que têm uma estrutura avançada de crédito aos consumidores, exclusiva ou associada a alguma organização financeira, largam com uma vantagem significativa por terem uma plataforma de relacionamento, ativação e histórico que as permite partir para a expansão acelerada de sua base de negócios, incorporando mais frentes em termos de canais, marketplaces, categorias, formatos, serviços e abrangência geográfica de atuação, especialmente pela evolução combinada das vendas pelo e-commerce.
E em breve podendo ainda integrar outros ecossistemas, formando alianças ainda mais relevantes.
Esse é mais um dos vetores importantes do processo de formação dos Ecossistemas de Negócios Made in Brazil e um ponto que diferencia o que acontece por aqui, como também ocorre em Portugal, Chile, México e Reino Unido, daquilo que acontece em outros mercados globais.
Nota: Nesta semana, nos dias 27 e 28 de maio, estaremos debatendo e discutindo o presente e o futuro dos Ecossistemas de Negócios com Mark Greeven, atualmente na Holanda, uma das maiores autoridades globais no tema, com a participação de Shaoming Yang, de Hong Kong, e ex-vice-presidente de Alibaba-AliExpress, apoio da KPMG e participação de CEOs e presidentes ligados aos setores de varejo e consumo no Brasil. Para conhecer mais sobre o tema, acesse a Amazon e baixe o paper “Ecossistemas de Negócios: Transformando o mercado, o consumo e o varejo” (clique aqui).
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Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvea Ecosystem e Publisher da Plataforma Mercado & Consumo.