Consumo na pandemia: efeitos da recessão, do auxílio e de mudanças de comportamento

O que se pode falar de 2020 é que foi um ano sui generis e servirá por muito tempo como proxy para estudo de como um momento de estresse na sociedade se refletiu com várias facetas de nossas vidas. Alguns fenômenos podem ser medidos com precisão, outros com algumas aproximações, e muitos são praticamente impossíveis de serem medidos.

Dentre os dados que podem ser razoavelmente aproximados, estão o Consumo das Famílias e a Renda do Consumidor. O ano de 2020 foi um momento muito especial de mudança de comportamentos, com algumas voluntárias e outras adotadas por coerção, por causa da ordem do Poder Público, por decisão de empresas e empregadores ou por infortúnio do contato com o vírus que assolou o mundo.

Essas mudanças de comportamento, definitivas ou não, ficaram gravadas de várias formas, mas em especial o Consumo das Famílias pode ser avaliado sob alguns critérios mensuráveis, como os gastos em cada setor da economia.

De um lado, segundo critérios formais captados pelo IBGE, a renda dos brasileiros efetivamente recebida por meio de trabalho, pensões e aposentadorias e outras fontes regulares caiu 3,7%, ou quase R$ 100 bilhões em 2020 (em termos nominais). Por outro lado, segundo a Pnad Contínua, a renda total percebida cresceu 3,4% ou quase R$ 90 bilhões, quando contabilizado o auxílio emergencial, que foi de R$ 180 bilhões.

Assim, 2020 foi um ano de contrastes e assimetrias, com perda de renda do trabalho (generalizada no setor privado) e aumento de renda assistencial para as classes baixas, o que provocou enorme assimetria de comportamento e, portanto, de consumo. Alguns fatos resumidos:

  1. Em 2020, houve incremento de renda nominal de quase R$ 100 bilhões em relação a 2019;
  2. A maior parte do valor distribuído em forma de auxílio emergencial se destinou a famílias com renda de até dois Salários Mínimos;
  3. O varejo, segundo o IBGE, cresceu cerca de 4% em termos nominais, o que significa algo ao redor de R$ 80 bilhões de gastos a mais com aquisição de produtos pelas famílias;
  4. Serviços prestados às famílias tiveram queda estimada de gastos de R$ 100 bilhões;
  5. Cotejando a queda de renda, o auxílio e as mudanças de consumo (mais varejo e menos serviços), há um acúmulo de poupança em relação ao ano anterior.

Esta assimetria de gastos, renda e comportamento entre setores e grupos de pessoas, que foi capturadas pelos dados acima listados, mostra que em 2020 o País atravessou um momento de muitas mudanças, mas que elas serão em sua maioria transitórias, talvez persistindo até meados de 2021. Isto deve ser foco de atenção para empresários, em especial aqueles que produzem bens e serviços destinados ao consumo em massa. Neste sentido, seguem algumas observações sobre o assimétrico quadro do consumo em 2020:

  1. Famílias que consomem serviços em maior quantidade tendem a ter um poder aquisitivo maior do que a média;
  2. Os setores que mais sofreram com as restrições da pandemia – por causa das restrições legais para funcionamento dos negócios ou por receio e mudança de comportamento dos consumidores – são voltados, em grande medida, a serviços como cinemas, bares e restaurantes, lazer e turismo;
  3. As famílias mais ricas não viajaram, não consumiram tanto em bares, restaurantes, festas e outros serviços, e parecem não terem sido atingidas tão fortemente pelo desemprego;
  4. Famílias mais pobres tiveram queda da renda (aumento do desemprego) que foi compensada pelo auxílio. Essas famílias – algumas das quais ainda mantiveram também alguma renda informal ao longo desse período para além do auxílio emergencial – foram responsáveis por uma boa parcela do boom de consumo em supermercados (itens básicos) e também de material de construção;
  5. Vendas ampliadas de materiais de construção e de supermercados se beneficiaram não somente do auxílio emergencial, conforme já apontado, mas também dos gastos das famílias mais ricas. Estas deixaram de consumir em restaurantes e viajar, mudando o carrinho de compras nos supermercados, com maior quantidade e diversidade de itens;
  6. Também, trabalhando de casa, muitas dessas famílias tiveram de fazer pequenas (ou até grandes) reformas, e adaptar escritórios e áreas de “lazer” e aproveitaram para fazer algumas melhorias nos imóveis (eventualmente mesmo em imóveis de veraneio).

Cenário para prognósticos ainda está nublado

O Brasil inicia mais um ano cheio de incertezas. Em 2020, os prognósticos eram relativamente positivos, mas o País foi colhido pela Pandemia de Covid-19 com efeitos inimagináveis naquele momento. Havia menos incerteza, mas o acaso se mostrou mais uma vez um fator poderoso. “O imprevisto é uma espécie de deus avulso, ao qual se deve reservar algumas ações que podem ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos”, escreveu Machado de Assis.

O ano terminou muito pior do que se poderia prever em seu início, mas, por outro lado, menos traumático do que se chegou a desenhar lá por abril ou maio do ano passado, quando houve quem projetasse queda de dois dígitos do PIB.

O presente ano traz mais incertezas do que trazia 2020 em seus momentos iniciais, justamente por conta do surgimento de novas cepas do vírus e pelo ritmo incerto da vacinação. Os efeitos da pandemia serão digeridos ao longo de muito tempo e com efeitos globais que devem se prolongar bastante. Pela mesma lógica, o acaso e o imprevisto poderiam tornar um ano que provavelmente será extremamente complexo em uma boa surpresa, mas as análises devem se pautar em probabilidades e não em pontos fora da curva.

O desemprego deve crescer no primeiro semestre e haverá queda de consumo se não houver a reedição do auxílio emergencial. Como há uma espécie de poupança (renda não dispendida) advinda de 2019 pela queda de consumo, talvez uma parte disso seja compensada, porém, tais recursos estão mais nas mãos das famílias mais ricas e o auxílio e o emprego fazem mais falta para as famílias mais pobres. Isso pode iniciar o ano com uma reversão relativa de desempenho: menos supermercados, mais serviços, relativamente.

O ano reserva muitas mudanças e provavelmente muita volatilidade, de modo que é imperioso observar atentamente cada fator diretamente responsável pelo consumo e/ou comportamento do consumidor: emprego, auxílio emergencial e evolução da pandemia serão determinantes para as decisões.

Um exemplo prático da importância de cada uma dessas influências é imediato: o Carnaval e os feriados estão cancelados em muitos locais, e isso muda tudo para consumidor, lojas, bares, restaurantes e cidades. Ainda está difícil antecipar quem ganha e quem perde (e quanto) em 2021 enquanto não vier a normalização da saúde pública.

Fabio Pina é membro da Gouvêa Inteligência Competitiva.
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