Vem crise, vai crise, das mais diferentes formas, e quase sempre o empresariado brasileiro se supera. Criatividade, resiliência e energia para lutar e buscar caminhos alternativos. É assim, e de muitas outras maneiras, que os empresários passam pelas mais fortes crises, se reinventam e caminham para frente com otimismo.
Há congressos, seminários, fóruns e outros marcantes eventos que reconhecem e dão destaque aos cases brasileiros, que acabam sendo divulgados mundo afora.
Os cases acontecem, principalmente, quando suas realizações dependem apenas do espírito empreendedor do empresariado brasileiro, quer seja ele da agricultura, da indústria, do serviço ou do varejo, quando atua dentro de um mercado com equidade concorrencial e previsibilidade de políticas públicas e das obrigações tributárias de cada negócio, ou seja, em um ambiente de negócios no qual o cenário permite prever e empreender. E o resultado é a geração do tão imprescindível emprego e renda para o povo brasileiro.
Porém, não é sempre assim.
Vamos tomar como exemplo a recente polêmica sobre as importações de bens de pequeno valor via plataformas digitais, conhecidas como vendas cross border. Para entender melhor o assunto, é fundamental voltarmos pelo menos alguns anos. Esse processo de importação é possível desde 1999, com a seguinte regra: importação por pessoa física, de outra pessoa física (C2C) residente no exterior com valor de até U$ 50, estava, e ainda está, isenta do imposto de importação.
Nada mais razoável, pois muitos têm amigos que vivem no exterior ou necessidade esporádica de bens de pequeno valor, que são isentos do pagamento do imposto de exportação de 60% e do ICMS (Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços) de cada estado de destino, sendo devidos somente quando eram importações de empresas para empresas ou de empresas para pessoas físicas. (B2B2C) aplicáveis a qualquer valor.
Ocorre que, como amplamente divulgado, as conhecidas plataformas digitais de vendas cross border se utilizaram, por anos, do subterfúgio de remeter do exterior produtos como sendo de uma pessoa física para outra única pessoa física no Brasil, como se fosse uma compra esporádica, não pagando o imposto de importação nem o ICMS. Quase na sua totalidade, apesar de serem, de fato, remessas efetuadas por empresas, foram registradas como C2C e com preços de até U$ 50.
Com o exponencial crescimento desse tipo de transação, ficou evidente a prática de fraude, como recentemente declarado pela Receita Federal do Brasil, que apurou que uma única pessoa física na Ásia enviou milhares de pacotes para poucas pessoas físicas no Brasil. Desnecessário gastar espaço comentando este fato, que foi registrado em estudos, matérias publicadas na imprensa e pelo próprio governo. Flagrante desrespeito às leis brasileiras.
Para se ter uma noção da relevância do assunto, estima-se que, em 2018, as pequenas remessas travestidas de pessoa física para pessoa física já eram de R$ 7,4 bilhões e atingiram, em 2022, R$ 67,9 bilhões, deixando de recolher impostos no valor superior a R$ 35 bilhões neste ano.
Tal crescimento do volume de importações duvidosas, que já vinha ocorrendo desde governos anteriores e dado à grita dos empresários, fez as entidades governamentais e as associações empresariais, em especial as ligadas ao varejo, se movimentarem.
Embora a lei para importações de pequenos volumes sempre tenha sido clara, nesse caso, até uma lei de fácil entendimento, simples, de fato, inexistia uma governança eficaz para gerir toda a movimentação das importações e ter dados para agir com o rigor da lei.
Nasceu, então, o programa Remessa Conforme, desenvolvido pelo governo federal ao longo do primeiro semestre de 2023, com a participação de entidades especializadas em comércio exterior e com a de associações empresariais. Estava marcada a data para o programa entrar em operação, 1º de julho de 2023, e todos comemoravam: agora haverá governança, e os impostos serão pagos, tanto o de importação de 60% como o ICMS.
Eis que, quase na véspera de o Remessa Conforme entrar em vigor, logo, a obtenção de dados para a cobrança dos impostos, que vinham, de longa data, sendo sonegados, a regra do jogo mudou. Quem poderia prever?
O mercado interno foi surpreendido pela nova Portaria MF 612/2023, que tornou o ilegal, legal. O que era obrigação de recolhimento do imposto de importação de 60%, mais o ICMS, quando a remessa ocorria por plataforma digital cross border para uma pessoa física, foi reduzido a zero, restando apenas a obrigação do pagamento de 17% de ICMS, percentual que foi padronizado para todos os Estados nesse tipo de importação.
De uma só vez, tornou o ilegal, legal, ao se eliminar o imposto de importação de 60%, e aniquilou a capacidade da empresa brasileira, da indústria ao varejo, de competir no seu próprio promissor mercado interno.
Vamos aos dados, mostrar a realidade enfrentada, para que esse artigo não venha a ser interpretado como um pedido de protecionismo para as empresas brasileiras.
Utilizaremos nas demonstrações as informações divulgadas pelo IDV (Instituto para Desenvolvimento do Varejo), apuradas em estudo técnico contratado junto ao IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação), reconhecido por seus trabalhos na área dos tributos no País.
A redução para zero do imposto de importação, mantendo o ICMS de 17% para todos os Estados, leva os importados, pela forma da aplicação do ICMS, a uma carga tributária de 20,48% para todos os produtos que entrarão no Brasil com preço de venda de até U$ 50, ou seja R$ 250, nas operações entre as plataformas digitais cross border e a pessoa física que efetuou a compra.
Exemplificando, seria como se o produto brasileiro, ao longo de toda a sua cadeia, da matéria-prima, passando pela produção e distribuição e chegando ao varejo, tivesse a carga tributária de apenas 20,48% ao ser vendido ao cliente do mercado interno, com um tíquete médio de até R$ 250 (U$ 50), tíquete este que representa, aproximadamente, 90% das vendas do varejo brasileiro.
Porém, a realidade da carga tributária a que somos submetidos está muito acima dos 20,48% concedidos às plataformas digitais cross border, tirando das empresas brasileiras qualquer possibilidade de competir em seu próprio mercado interno, dito promissor.
Vejam, abaixo, o cálculo técnico do IBPT para a carga tributária de 10 setores da economia:
Para melhor visualizar a discrepância entre o que foi concedido às plataformas digitais cross border, 20,48%, comparamos com a média da carga tributária das categorias do estudo do IBPT e encontramos 109,9% aplicados às empresas brasileiras.
Não existe forma de uma empresa brasileira ser competitiva quando é submetida a cinco vezes mais carga tributária do que seu competidor externo, transnacional. Não há produtividade e nem criatividade que vença tal discrepância.
Estimamos que, mantida a redução a zero no imposto de importação nas operações via plataformas digitais cross border, nos próximos anos, deverão ser eliminados cerca de 554 mil vagas de trabalho ao longo da cadeia da produção até o varejo, deixarão de ser pagos R$ 6,7 bilhões em salários e, consequentemente, os respectivos encargos trabalhistas, afetando a renda dos trabalhadores. E empresas fecharão ou terão que mudar de país para também trazerem do exterior seus produtos com imposto de zero.
A sociedade empresarial e as associações têm feito um trabalho intenso de convencimento e conscientização da gravidade dessa decisão junto ao governo federal, ao Legislativo e aos principais stackholders, visando reverter essa situação insustentável e voltar a proporcionar equidade concorrencial ao empresário brasileiro.
Isso dito, a alíquota de importação deveria ser reestabelecida. Para gerar a isonomia no Brasil, os cálculos do IBPT apontam para uma alíquota nominal de imposto de importação de 74,2%, que somados aos 17% de ICMS, chegariam à carga tributária de 109,9% apurada pelo IBPT.
Um imposto de importação de apenas 20%, como tem sido aventado pelas plataformas digitais cross border e publicado na imprensa, atingiria a carga tributária de apenas 44,5%, claramente insuficiente para o reequilíbrio do mercado, pois a carga tributária do mercado interno seria, ainda, 2,5 vezes, tendo com base os submetidos 109,9% calculados no estudo apresentado.
Os 60% de imposto de importação para remessas internacionais via plataformas digitais cross border que estavam em vigor até 31 de agosto de 2023, sabemos, agora, que eram insuficientes para a isonomia e a equidade concorrencial, porém, faz-se necessário seu retorno de imediato, o que já seria um alento para as empresas nacionais que atuam no Brasil, um mercado sempre promissor.
Jorge Gonçalves Filho é presidente do IDV.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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