Ontem, participei de uma conferência por vídeo, que podemos classificar como antológica. Faço parte de um grupo de varejo no WhatsApp que troca muitas informações e conhecimentos, gerando muito valor para todos os participantes. Durante essa conferência, tivemos o prazer de ouvir o João Rozário da Silva, uma verdadeira lenda viva do varejo alimentar de autosserviço.
João compartilhou histórias inestimáveis sobre o início dos supermercados no Brasil. Ele esteve diretamente envolvido na criação do Sirva-Se em 1953, em Higienópolis, na esquina das ruas Maria Antônia e Major Sertório, onde hoje funciona uma loja Pão de Açúcar, empresa que comprou o Sirva-Se, em 1965. Ele nos contou como era a reação e aceitação dos clientes, como eram feitos o abastecimento da loja e das gôndolas, e como essa revolução no conceito de compras impactou o varejo tradicional, onde os produtos eram vendidos a granel e servidos no balcão.
Mas vamos falar do presente e das evoluções que o varejo teve ao longo dos últimos 100 anos, tanto no mundo quanto no Brasil.
Philip Kotler, o papa do marketing moderno, em seu recente livro “Redefining Retail: 10 Guiding Principles for a Post-Digital World”, oferece uma visão interessante da jornada que nos trouxe até aqui e, principalmente, para onde devemos ir, o que ele chama de varejo 5.0.
Vamos relembrar a história dessa evolução
O varejo 0.0 remonta aos Fenícios na Mesopotâmia, em 6.000 a.C., quando começaram as trocas de mercadorias e bens, o famoso escambo. Esse sistema durou cerca milhares de anos, evoluindo para uma troca de mercadoria e bens por dinheiro, até que no começo do século XX vieram as grandes evoluções.
O varejo 1.0 surgiu em 1916, em Memphis, Tennessee, quando um varejista chamado Piggly Wiggly criou as primeiras gôndolas e checkouts, permitindo que os clientes fizessem seu próprio abastecimento. Isso mudou radicalmente as indústrias de bens de consumo e o sistema logístico.
O varejo 2.0, nos anos 20 e 30, trouxe o conceito de “tudo sob o mesmo teto”, permitindo que, com uma única ida à loja, o cliente resolvesse as compras. João Rosário destacou que, na época do sirva-se, os clientes valorizavam não apenas a facilidade de escolher e pagar pelos produtos, mas também a conveniência de encontrar tudo em um só lugar. Esse modelo de autosserviço já mostrava seu diferencial, facilitando a vida do cliente.
Eu vivi a chegada do Carrefour no Brasil, em 1975, e, em 1979, comecei a trabalhar lá, quando havia apenas quatro lojas. O conceito de hipermercado era ainda mais agressivo na entrega da solução “tudo sob o mesmo teto”, combinando alimentos e não alimentos, como eletroeletrônicos, têxteis e bazar. Esse modelo reduziu significativamente o tráfego a pé e transformou a intensidade das compras, de alta frequência com baixos volumes, para baixa frequência com altos volumes.
O varejo 4.0, nos anos 90, desponta o e-commerce, possibilitado pelo advento da internet. No início, em 1994, atendia 40 milhões de pessoas no mundo, com um tráfego de dados de 56 kilobits por segundo. Hoje, o e-commerce atende aproximadamente 5,1 bilhões de pessoas no mundo, com um trânsito de dados de até 6.000 megabits por segundo. Houve uma mudança de paradigma, em que o cliente não precisava mais sair de casa para escolher seus produtos. O modelo avançou mais rapidamente no varejo não alimentar, mas também vem crescendo no alimentar, especialmente na China. Outro impacto importante foi o surgimento dos marketplaces, que transformaram indivíduos em “varejistas” que atendem demandas de outros indivíduos, além do fenômeno da “recomendação” nas mídias sociais.
Chegamos ao varejo 4.0, o comércio omnipresente, que começou com a demanda dos millennials e se intensificou com a covid-19 e os lockdowns. O varejo alimentar precisou rapidamente atualizar seus sistemas para o omnichannel, combinando lojas físicas, e-commerce, WhatsApp e delivery. Nos primeiros 20 anos do século XXI, o comércio teve que ser omnichannel, consolidando o P2P (pessoa a pessoa) e a desmaterialização dos meios de pagamento, além do boom do e-commerce e do D2C (direto ao consumidor, pela indústria), criando um modelo híbrido entre o mundo físico e o digital, o chamado figital.
Agora, estamos diante do varejo 5.0, a era do comércio pós-digital. A tecnologia será menos visível, mas muito mais presente. Dados serão o bem mais precioso, mudando a forma como varejo e indústrias comunicam suas vendas, buscando uma hiperpersonalização para cada cliente, potencializada pela Inteligência Artificial. Isso gerará impactos significativos no papel dos colaboradores frente à nova tecnologia.
Como encarar o futuro e a inovação, sabendo que a única constante é a mudança? Quais cuidados e atenções os varejistas devem ter com as tendências do mercado, a jornada dos consumidores, dos colaboradores e as constantes evoluções entre tecnologia e pessoas? O modelo de olhar para trás e se inspirar no que deu certo já não funciona mais. Precisamos olhar para frente, acompanhar as tendências e não ser reticentes quanto às possíveis mudanças. O mundo está mudando muito mais rápido do que as empresas e organizações conseguem se adaptar.
Então, pergunte-se: será que a cultura de nossa empresa (pessoas, processos, valores e recursos) permite que vençamos na era pós-digital? Será que nossa liderança tem a habilidade, o poder, o senso de significado, o senso de urgência e a coragem para mudar a situação presente, aceitar a oportunidade de evoluir, abraçar a incerteza, gerar inovação e até mesmo lidar com falhas?
Será que para vivermos esse futuro, não temos que co-construí-lo?
Praticar os pilares ESG (ambiental, social e governança), nos quais os 3 P’s de John Elkington, Planet, People and Profit (Planeta, Pessoas e Lucro) estão evoluindo para Planet, People and Purpose (Planeta, Pessoas e Propósito).
Vencer no mundo pós-digital não é apenas sobre comprar e vender, lucrar, negociar e operar. É sobre fazer tudo isso (básico do varejo), focando no propósito e valores da empresa, ecologicamente corretas, socialmente justas, culturalmente diversas e economicamente viáveis, encantando os clientes, tratando-os como únicos, revendo a forma e a relação comercial com a indústria, considerando o equilíbrio entre pessoas e processos, qualificando-as para esse novo mundo figital.
Hugo Bethlem é presidente do Capitalismo Consciente Brasil.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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