A hospitalidade é um luxo tradicionalmente oferecido pelos seres humanos. Como conceito, ela apresenta muitas nuances e oportunidades de interpretação individuais. Em um hotel de luxo, é a entrega da experiência perfeita. Em um pequeno quiosque de café, é a atenção de perguntar sobre como está o seu dia.
A percepção sobre hospitalidade depende do estado de espírito de quem busca um serviço ou produto, depende da proposta de valor da empresa ali representada e de fatores externos que podem afetar as duas partes. Sempre que há um ser humano envolvido, existem empatia, interpretação do contexto e senso de urgência.
Já a Inteligência Artificial está longe de ser uma buzz word (palavra do momento) e, desde 1960, começou a ser utilizada em experimentos para tradução, pouco mais de 14 anos depois de criado o primeiro computador. Ou seja, ela vem permeando nossa vida há algum tempo.
Como ambas convivem no mercado de foodservice? Sem dúvida em duas grandes áreas. A primeira é a de gestão, apoiando os empresários, gerentes e times a tomarem decisões mais assertivas de forma a impactarem positivamente os resultados do negócio. Algo fundamental em um momento de margens tão oprimidas. E a segunda área é a de atendimento.
O cliente anseia por personalização no seu atendimento. Na verdade, ele busca pelo sentimento de se sentir especial. Um termo que aprendemos em uma das apresentações da Technomic durante a NRA Show 2024 foi o Vip Me, ou seja, faça-me sentir incrível.
Geralmente, quando pensamos em melhorar a experiência do cliente, no Brasil, consideramos treinar mais as nossas equipes. A necessidade de treinamento segue imperativa. Independentemente do nível das pessoas, elas precisam ter clareza e estarem preparadas para interagir com os clientes de forma alinhada ao esperado pela empresa. Nos níveis mais altos, é a capacidade de pensar, mobilizar e agir estrategicamente; na base da pirâmide, é cultura, padrões, eficiência e entrega.
Considerando que os funcionários estejam treinados, como eles vão tornar a experiência do cliente realmente vip em um fast-food? Em um supermercado? Na cafeteria? Ou até mesmo no restaurante ou hotel cinco estrelas, considerando os desafios de mão de obra que temos no mercado?
No mercado americano, a dor é a falta de gente para o trabalho. Muitas pessoas gostam dos bônus sociais de atuar no setor de hospitalidade. Por exemplo, falar outros idiomas, interagir com pessoas e ter experiências gastronômicas diferenciadas – além das gorjetas, é claro.
Porém, o desejo pelo home office dos mais jovens, clientes indóceis e jornadas longas parecem suplantar esse potencial bônus. E o que vemos é um cenário em que dois garçons atendem sozinhos restaurantes com 30 ou mais mesas em horários de pico. Ou seja, se cada mesa tiver 4 lugares, com um giro e meio, são 180 clientes atendidos em pouco mais de 2 horas e meia, por apenas dois profissionais. Presenciei muitos momentos extenuantes e de alta pressão como esse recentemente.
Pensando em Brasil, nossa crise de mão de obra disponível é menos drástica. O problema é a qualificação, somada à falta de investimentos operacionais para tornar a jornada desses profissionais menos cansativa e à falta de infraestrutura das grandes cidades – que os empurram para horas de transporte público -, além do aquecimento de outros setores da economia ou o desejo pelo self employment (Uber, motoboy, etc).
Seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, a Inteligência Artificial é um motor para aumentar o acesso ao conceito Vip Me. Estar em um fast-food, ter seu celular reconhecido via radiofrequência ou a partir do login na rede local, antes mesmo de você se aproximar do totem de autoatendimento, e ele personalizar o seu atendimento com mensagens do tipo: “Super bem-vinda! Seus pratos favoritos dos últimos pedidos online e em loja estão disponíveis, mas queremos te apresentar dois lançamentos que você pode gostar.” Você finaliza seu pedido, provavelmente já sorrindo, porque salvou tempo ao escolher o que gostaria e recebe uma carinha, mensagem ou algo divertido ainda da máquina.
Ao se sentar, seu pedido chega até você por um robozinho que identifica seu aparelho e leva até você tudo o que pediu. Sistema frio? Mas o que você estava buscando como hospitalidade nesse momento? Comida segura em termos de qualidade, rapidez no atendimento, cortesia e eficiência. Então, esse foi um momento Vip Me. Para completar, o consultor de relacionamento da empresa (não mais garçom) passa para te cumprimentar, saber como está tudo e se precisa de algo mais. Trazendo a visão de que os humanos continuam cuidando de você.
Ainda não vi isso tudo junto em operação, mas estou descrevendo algo muito próximo de se realizar e com o que poderemos ter de conviver, inclusive com felicidade. Algo que deverá se transformar em transversal do fast-food ao fast casual, seja de rede, seja independente.
Esse novo modelo deverá pressionar o mercado a ter processos ainda mais bem estruturados, pois os robôs não trabalham bem com a imprevisibilidade.
Para os restaurantes de ticket mais alto, como os de casual e fine dining, as ferramentas de Inteligência Artificial serão uma alavanca para a proximidade. Para que o garçom me chame pelo nome, também lembre dos meus pratos favoritos, seja avisado de que há mais de 8 minutos não circula no salão e que a regra de ouro da casa é essa. Detectar que cruzou com clientes e não os cumprimentou porque as câmeras estarão conectadas e o sistema ajudará os restaurantes, apoiando na correção imediata das ações.
Mas por que os robôs não irão trabalhar em conceitos casual e fine dining? Como o luxo pressupõe serviços prestados por humanos, a expectativa é de uma conexão genuína, então a IA passa a ser coadjuvante para o ser humano tornar a visita ao restaurante absolutamente perfeita.
Um novo perfil de garçom nascerá. Mais conectado à tecnologia, que consegue ouvir um ponto auditivo e interpretar as orientações de forma altamente positiva. Mais produtivo e menos exausto por ter de lembrar cada coisa que o cliente pediu, pois a IA estará ali para ajudá-lo.
Alguns, ao ler esse artigo, vão dizer que o profissional de serviço (garçom, garçonete, atendente) se tornará preguiçoso ou até menos inteligente. Mas não é verdade. Você já ficou em pé durante um ou até dois turnos para atender clientes em dias de alto movimento. É exaustivo.
O profissional não tem vontade de estudar, praticar esportes, conviver com a família, porque não tem energia. Essas evoluções deverão tornar a profissão novamente interessante/sexy para as novas gerações e inclusiva, pois pessoas de mais idade poderão continuar trabalhando e isso deverá gerar profissionais que realmente estão ali por serem apaixonados pelo que fazem, sem sacrifícios adicionais, além de terem uma vida melhor.
Ilusão? Poesia? Com certeza não. IA positiva.
Até o próximo.
Cristina Souza é CEO da Gouvêa Foodservice.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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