Com o fim da era da pandemia, o tête-à-tête das interações humanas voltou à vida do dia a dia. O fenômeno da ressocialização em massa vem acontecendo em todos os países nos quais há liberdade de opinião, naturalmente, cultivando-se a arte do encontro. O reflorescimento global dos cafés, bares e restaurantes vem também ocorrendo no Brasil com grande ímpeto, porém, com um impulso ainda menor do que se observa em dezenas de países, sobretudo, os da Europa, Oceania e do Leste Asiático.
Isto porque os governos nacionais de 77 nações, conforme atestou o Fundo Monetário Internacional, não deixou que suas empresas saíssem da covid-19 com os pés acorrentados por dívidas. Durante a pandemia, foram concedidos recursos não reembolsáveis (portanto, a fundo perdido) aos negócios que estavam sendo asfixiados pelos “lockdowns”, em que as pessoas eram proibidas de saírem de casa. Essas interdições dos “lockdowns” se espalharam pelo mundo a partir de janeiro de 2020.
No dia 9 de março de 2021, estampou-se no blogue do International Monetary Fund (IMFblog) o resultado de um levantamento da instituição, por meio do qual foram identificados 100 países que estavam concedendo empréstimos a fundo perdido às empresas afetadas pelos lockdowns. Aqui, no Brasil, no dia 3 de maio de 2021, limitou-se providenciar apenas um balão de oxigênio para as empresas que agonizavam com o acúmulo cotidiano de dívidas e mais dívidas. Criou-se, então, o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse). O nome do Perse sequer faz clara indicação de que se destina também a socorrer os combalidos bares e restaurantes.
Esse programa compreende ainda o ramo da hotelaria, além dos contribuintes que realizam ou comercializam, entre outras atividades, como as relacionadas a eventos esportivos, a shows, a feiras, etc. O socorro brasileiro limita-se a reduzir a zero, durante cinco anos, as alíquotas do imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ), da CSLL, do PIS e da Cofins. Mas só foi socorrido, no Perse, um conjunto de 500 empresas, aquelas que estão fora do Simples, e, ainda assim, limitando-se ao Cadastro Único. Infelizmente, o que houve foi um programa para alguns, e não para todos. Já fomos à Justiça, inclusive, com ação no Supremo Tribunal Federal.
É sabido que o Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo, com um dos piores retornos de benefícios à população. E, assim, mesmo com o Perse ainda em vigor, 57% das empresas do setor da alimentação fora do lar continuam operando sem fazer lucro, sendo que 23% ostentam prejuízos, conforme recente pesquisa efetivada pela Abrasel. O setor tem 1,5 milhão de CNPJs ativos, dos quais 990 mil se enquadram na categoria de microempreendedores individuais (MEIs). No total, operam com 5,3 milhões de empregados.
Durante a pandemia, o setor viu-se na contingência de ter de recorrer a empréstimos. Hoje, 40% dos estabelecimentos ainda permanecem com parcelas de pagamento atrasadas, além das pendências nos encargos trabalhistas e nos impostos federais e estaduais. Metade das empresas (53%, aponta a pesquisa) não conseguiu repassar a totalidade da inflação dos alimentos. E somente em 10% das empresas reajustaram-se os preços acima da inflação. Os estabelecimentos da alimentação fora do lar sofreram um duplo golpe. A inflação do setor veio forte; os juros, idem.
Mas, no frigir dos ovos, o que prevalece no setor é um visível otimismo. Em primeiro lugar, os empresários de todos os portes (indo dos que se situam no MEI até os dirigentes e acionistas das maiores redes nacionais de restaurantes) alegram-se ao ver a freguesia novamente ocupando, com ares de felicidade, as mesas dos estabelecimentos. Os seus semblantes só transmitem maior preocupação com esta cruel ameaça que paira sobre o setor: a extinção dos benefícios do Perse. Trata-se de uma aniquilação que friamente se daria em duas etapas. A partir de abril deste ano, tornariam a ser plenamente cobrados a CSLL, o PIS e a Cofins. Em janeiro de 2025, voltaria a ser inteiramente taxado o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IPRJ).
O que o setor quer é diálogo. A troca de ideias, a conversação, a interlocução e a mesa-redonda estão no coração, na essência, no âmago dos empreendedores dos cafés, bares, bistrôs e restaurantes. Os países mais desenvolvidos, sobretudo os da Europa, têm as ruas ladeadas por amplas calçadas, propícias aos que nelas passam e aos que nelas querem permanecer. Sob os toldos dos estabelecimentos se pratica a arte da interlocução comunitária, que é vista por muitos sociólogos como a base de sustentação das democracias historicamente sólidas.
O Brasil caminha nesta direção, ainda que com tropeços, tais como o da extemporânea e descabida extinção do Perse. A gente sabe que o Estado tem de interferir na medida certa. Requer-se uma sutil moderação, equivalente à quantidade de sal que se coloca na comida. Sem o sal, o alimento fica insosso. Se utilizado além da conta, passa-se a correr o risco de trágicas consequências ao organismo, como o infarto do miocárdio e o acidente vascular cerebral.
Chega de impostos demais e sociedade de menos. A causa dos bares e restaurantes sintetiza-se no lema da Abrasel: a partir das ruas, um país mais simples de se empreender e melhor de se viver.
Paulo Solmucci é presidente da ABRASEL
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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