Na Tijuca, bairro tradicional da zona norte do Rio de Janeiro, tive a oportunidade de ter uma conversa muito aberta com Gustavo Scarambone, CEO do Lecadô, uma das docerias mais tradicionais da cidade. A empresa familiar foi construída com base em muita dedicação, comprometimento e disciplina. Os três irmãos que tocam o negócio se comprometem a trazer a todo o momento inovação, sem abrir mão da qualidade dos produtos e da experiência e relacionamento com o cliente. Em francês, le cadeau quer dizer o presente. E essa atenção e carinho de dar um presente a alguém parece ser reforçada em cada detalhe da empresa.
Durante a nossa conversa, identifiquei três grandes esferas fundamentais para o Lecadô cuidar da estruturação e evolução contínua do negócio:
1) Gestão de pessoas, especialmente das lideranças;
2) Criação de novos produtos; e
3) Estruturação e expansão da rede.
O objetivo aqui é compartilhar um pouco das principais ações e estratégias que foram adotadas, para que possam conhecer um pouco mais o modelo de negócio e buscar inspirações que possam ser aproveitadas também no seu negócio.
Gestão de pessoas
Tanto o cliente quanto o funcionário precisam de atenção e dedicação, principalmente de quem ocupa cargos de liderança. “Não é só você pagar o salário. Tem o salário que não é financeiro. Eles gostam de ouvir um elogio, de conversar e receber bom dia”, comentou Gustavo sobre os princípios de relacionamento que a companhia se baseia em sua rotina.
Existem muitos caminhos e ações que podem ser realizados para demonstrar esse cuidado e desenvolver um relacionamento mais próximo do líder com o time. “Algumas lojas nossas fazem café da manhã e cantam parabéns para o funcionário no aniversário dele. É uma forma de se preocupar com a pessoa que está ali, levando a tua marca, falando com o teu cliente. Quando o funcionário é bem tratado, ele vai tratar bem o cliente”, complementou Gustavo. São gestos simples, que promovem a integração e valorização das pessoas.
Estar mais próximo das pessoas e dar o exemplo é uma ação que tem sido fortalecida na empresa, e isso passa pelo processo de conscientização. “Se a gente chega numa loja e encontra um salgado que está feio na vitrine, por exemplo, chamamos o colaborador e perguntamos ‘você pagaria por esse salgado?’ Não. Então, por que o seu cliente tem de pagar? E reforçamos a orientação correta do procedimento de preparo e exposição”, compartilhou, ao mencionar a dedicação aos detalhes que fazem parte dos procedimentos operacionais do negócio.
Ações mais estruturadas e estratégicas também estão sendo testadas e implementadas em algumas unidades. Um profissional assumirá o papel de anfitrião, com profundo conhecimento de produto, para recepcionar os clientes e intensificar a oferta de serviços.
A abordagem do atendimento será utilizada de acordo com o perfil de cada cliente, como os que desejam curadoria, apoio, mais informações para tomar sua decisão de compra ou experimentar novos produtos. A figura desse especialista é uma forma de reconhecimento de profissionais que se dedicam mais a conhecer a empresa, os produtos, oferecer um atendimento de excelência e gerar mais vendas, além de ser uma fonte de inspiração para os demais membros do time.
Quando a rede era pequena, os membros da família assumiam esse papel. Agora, devido ao crescimento, eles desejam que seus funcionários assumam essa abordagem, com a mesma paixão, dedicação e conhecimento. O cliente precisa se sentir acolhido e bem recepcionado no Lecadô. “A gente enxerga que o atendimento faz diferença. Como eu não estou mais do lado de fora do balcão atendendo, preciso que os funcionários assumam esse papel. Meu objetivo é passar para esses funcionários um pouco dessa atenção que ele tem que ter com o cliente.”
O primeiro teste desse modelo foi realizado no Dia das Mães, época de maior movimento, em uma das principais lojas da rede. Aos poucos, outros estão sendo realizados em mais unidades. O modelo será implementado gradualmente, de acordo com as oportunidades e conforme os profissionais de cada loja atinjam esse grau de maturidade e conhecimento de produto. A previsão é de que o primeiro time de anfitriões esteja plenamente treinado para começar a atuar até o final de agosto deste ano.
Uma visão clara entre serviço e experiência é aplicada continuamente. Oferecer um bom serviço é garantir que a comida esteja fresca, saborosa e com boa qualidade. Mas quando você oferece uma curadoria em cima desse serviço, isso passa a ser a experiência. “Somos super honestos com os clientes. Se ele pede 100 salgadinhos, perguntamos para quantas pessoas são. Se, por exemplo, a pessoa responde que são cinco, sinalizamos que é muito e orientamos a comprar de uma quantidade mais adequada”, sinalizou Gustavo, ao reforçar o comprometimento da empresa com um relacionamento honesto e de credibilidade com os clientes. Ao trazer essa clareza, o cliente percebe, valoriza e comenta com outras pessoas sobre o bom atendimento que recebeu e de que a empresa proporciona uma experiência positiva.
Três pilares da experiência são valorizados no Lecadô: sentido, emoção e memória. A loja tem que estar bem arrumada, bonita e ter bom atendimento, com um aroma para que os sentidos dos clientes sejam provocados. Com isso, memórias positivas e afetivas são reativadas e associadas à emoção, o que contribui para a construção do relacionamento do cliente com a marca. A junção desses três pilares cria a experiência. Não é fácil de fazer, mas também não é impossível. Com um pouco de treinamento, é possível intensificar a experiência na loja.
Os gerentes da loja são os principais responsáveis pelos programas de treinamento e desenvolvimento da companhia. Informações, sugestões e boas práticas sobre o processo de gestão, vendas e atendimento no ponto de venda estão sendo coletadas para o registro de um modelo a ser seguido pelas unidades da rede rede; e todas as áreas da empresa estão envolvidas nesse projeto. “Desde o gerente de marketing ajudando até o gerente de operações, nutrição e qualidade. Todos os gestores estão montando, juntos, esse material”, relatou Gustavo, ao reforçar a contribuição de trabalho colaborativo.
Além das novas ações, o treinamento contínuo já faz parte da rotina das lideranças. Semanalmente, conduzem a ‘Terça das Vendas’, quando são analisados os resultados do ano anterior, conferido o que foi feito e as sugestões do que pode ser realizado de diferente. Dessa ação, nascem as novas iniciativas, treinamentos, programas e orientações de implementação.
Novos produtos, incluindo vegetais e com redução de açúcar
Dois novos produtos foram desenvolvidos e são grandes apostas do Lecadô. A coxinha vegana, feita completamente com ingredientes livres de origem animal; e o bolo de chocolate, que era uma receita da avó da família, com uma quantidade menor de açúcar, quando comparado com os doces tradicionais da casa. Ambos produtos estão totalmente em linha com as principais tendências do mercado de alimentação.
A coxinha de frango é um dos salgados mais tradicionais da casa. Com um processo semi-industrial, diariamente, 10 mil coxinhas recebem acabamento manual e artesanal na cozinha da fábrica, para depois serem embaladas e distribuídas para as lojas. Além da opção de consumir na loja, o cliente tem a possibilidade de comprar uma porção generosa, congelada e terminar de assar ou fritar em casa para consumir na hora que desejar.
Como já tinham um produto artesanal e semivegetal, trabalharam na substituição de alguns ingredientes e criaram uma coxinha 100% vegana, o que atraiu também um novo público. Comportamentos de consumo mudaram e, mesmo não assumindo um regime completamente vegano ou vegetariano, muitas pessoas têm procurado consumir menos carne.
Fizeram um teste cego, com clientes de todas as idades, e eles não perceberam que o produto era de origem vegetal. Os feedbacks foram extremamente positivos. O produto foi desenvolvido no ano passado e continua tendo uma boa procura.
Além de serem referência em coxinha, os bolos são outra fortaleza da marca. Apostar no que é bom para desenvolver produtos de extrema qualidade e que ofereçam uma boa experiência ao cliente é uma estratégia importantes para continuar a se solidificar no mercado. E assim, nasceu o bolo de chocolate do Lecadô.
“O bolo é gostoso, mas a calda é sensacional. Ele é um bolo mais leve. Não tem recheio de brigadeiro. É bolo e calda, só. É o bolo da vó, que ela faz em casa, com aquela calda maravilhosa em cima”, descreveu Gustavo. O bolo foi feito para comer quente e é uma explosão de sabores. Tive a oportunidade de provar a coxinha vegetal e o novo bolo de chocolate durante meu bate-papo e achei ambos os produtos extremamente saborosos.
“Inicialmente, produzimos pequenas quantidades, de 10 em 10 unidades, e distribuímos para as pessoas experimentarem e nos dizerem o que achavam.” Cerca de 150 pessoas experimentaram e deram feedbacks carregados de memória afetiva. O produto está em fase de teste em algumas lojas durante o mês de julho e será oficialmente lançado em toda a rede em setembro de 2024.
Outra estratégia de muita assertividade da Lecadô é fazer o planejamento de lançamento dos produtos, com campanhas sazonais, em datas estratégicas. Gustavo explicou que o lançamento do bolo de chocolate será realizado em setembro porque não compete com ninguém. “Não compete com a festa junina, com o festival do morango e o Dia dos Pais. Não compete com nada. Vai ser só o lançamento do bolo de chocolate.”
A comunicação clara nas redes sociais, com uma estratégia visual mais humanizada, foi um direcionamento importante para a conexão com o público e a potencialização dos lançamentos e campanhas. “Queremos que as pessoas se identifiquem com o que estamos apresentando. Então, vamos começar a disponibilizar também algumas receitas”, exemplificou o CEO do Lecadô.
Estruturação e expansão do negócio
Em 2018, José Carlos Scarambone, pai do atual board de diretores e fundador da empresa, aprovou o plano de expansão para a abertura da primeira loja fora do Rio de Janeiro: São Paulo foi o destino escolhido; com a sexta loja sendo inaugurada em 2019. Desde então, o plano de expansão foi acelerado e a rede chegou a ter 44 unidades. Atualmente são 35, sendo 18 próprias e 17 franquias.
Durante esses 5 anos de expansão acelerada, muitos aprendizados vieram. Além de faturamento, percebeu-se que é mais importante manter as lojas mais rentáveis, de forma a garantir uma rede saudável e fortalecida.
Outro ponto é selecionar os franqueados, de acordo com um perfil bem definido e critérios específicos, o que se mostrou crucial. “Não adianta você deixar o funcionário ali e não olhar para o número. Tem que viver isso aqui”, disse Gustavo, ao se refeirir à importância de o franqueado estar inserido na rotina do dia a dia da operação. Constância e persistência nos processos são princípios fundamentais para a estruturação do ponto de venda.
O franqueado precisa realmente dominar os processos no detalhe para que possa orientar e conduzir adequadamente os colaboradores no dia a dia. O produto é perecível, delicado e precisa seguir uma série de critérios de higiene, manutenção, preparo e exposição para manter a qualidade e a experiência do cliente. “Precisa ter carinho com o cliente e com a marca. Saber se relacionar. Então, a gente tenta cuidar para que as pessoas que querem estar aqui dentro, estejam aqui dentro. Se não, não adianta”, reforçou Gustavo, ao destacar a importância da competência e das habilidades de relacionamento interpessoal como um dos pontos considerados no perfil do franqueado e dos demais profissionais que fazem parte do Lecadô.
O treinamento e a preparação desse novo franqueado são outros fatores fundamentais. Há processos muito rigorosos que precisam ser cumpridos, desde a gestão financeira, fiscal e operacional do negócio até manuseio, exposição dos produtos e atendimento aos clientes, garantindo eficiência e qualidade da operação.
O layout das lojas é revisto e atualizado periodicamente. No modelo mais recente, o tamanho das vitrines foi reduzido, evitando desperdício e aumentando a rentabilidade do negócio. “O salgado precisa ser frito na hora do consumo. Se fritou, ficou na vitrine e não vendeu vai para o lixo. Até porque depois de um tempo, quando esfria, impacta na experiência do cliente.” Vitrines menores estimulam a rotatividade dos produtos, com uma margem final mais rentável, garantindo uma boa experiência de consumo.
Ao passo que as vitrines estão menores, o espaço no salão é mais bem aproveitado. Os clientes querem ter um espaço para sentar e consumir com tranquilidades, seja sozinho, em grupo, com amigos, família ou até para fazer uma reunião de negócios. Quanto mais tempo permanecerem na loja, se sentirem confortáveis e acolhidos, mais tendem a consumir. Além disso, uma das máximas do varejo é que “movimento atrai movimento”. Uma loja com, ao menos, um cliente vai ser mais atrativa do que uma vazia. O próprio Gustavo reforçou que “lugar ruim nunca está cheio e lugar bom está sempre cheio. Então, você chama a atenção dessa forma. São pequenos gatilhos, que fazem a diferença.”
O conjunto das novas ações já demonstrou aumentos consistentes de 5% ao mês nos últimos três meses e a expectativa é que continue crescendo conforme demais ações forem implementadas e continuarem em processo de amadurecimento.
“O Lecadô tem dois negócios: as lojas e a central de produção. A central de produção trabalha como uma fábrica, porém, entregando um produto com fortes elementos artesanail. Então, equilibrar isso tudo é fundamental para que a empresa siga em rota de crescimento”, afirma Cristina Souza, CEO da Gouvêa Foodservice, consultoria especializada no setor.
Uma trajetória consistente, de muita dedicação e comprometimento
José Carlos Scarambone era músico, com altas habilidades. Aos 4 anos já estruturava textos complexos; aos 17 anos tornou-se empresário e aos 18 assumiu um cargo como diretor de uma gravadora.
Queria mudar de ramo e comprou a loja da família. Convidou um especialista em doces para apoiar no desenvolvimento dos novos produtos e investiu na estruturação e crescimento da empresa, que amava. Criou os princípios da empresa, que são seguidos até os dias de hoje e estão expostos na parece da empresa para que todos possam consultar continuamente. Dicas valiosas para qualquer negócio.
Visionário, lia bem as pessoas. Era especialista em encontrar gente com o perfil ideal. Até pouco tempo, em um grupo de 200 funcionários, praticamente todos tinham sido pessoalmente contratados por José Carlos. Normalmente, começavam com processos de limpeza das lojas até alcançarem cargos maiores, tendo um time sempre preparado para sustentar com qualidade e agilidade o crescimento na empresa. “Ele sabia motivar. Entendia bem as pessoas e a essência delas. Ela começava fazendo o recheio, depois o caldo, o doce, confeitava a torta etc. Ele foi aproveitando as pessoas dessa forma, até chegarem em cargos de liderança”, relatou Gustavo Scarambone. Isso fez com que esses colaboradores desenvolvessem um profundo sentimento de pertencimento com a empresa.
Preparou também os filhos a passarem pelas diversas áreas da empresa, até assumirem as cadeiras de direção em que estão hoje. A segunda geração da família é composta por Gustavo Scarambone, 46. Expansivo e com experiência de mercado, cuida da parte operacional e administrativa; Raul Scarambone, 42, com um perfil mais observador e atento aos detalhes, é responsável pela área financeira; e Daniel Scarambone, 44, criativo e destemido, assume a área de compras e cuida da fábrica.
Quando a segunda geração começou a ter contato com a empresa, a rede tinha cinco lojas. O pai colocou os filhos para acompanharem a obra da sexta loja e, depois, deu a missão de tornar aquele novo negócio rentável e lucrativo, sem abrir mão da qualidade. O aprendizado na prática, a dedicação e o comprometimento em dar certo foi um dos principais legados de José Carlos, uma inspiração que se fortaleceu e continua presente na memória, na rotina e em cada palavra que transborda admiração, gratidão dos filhos e de todos que fazem parte dessa grande família.
Valores passados de pai para filho e para todos que trabalham juntos por um propósito maior é um dos melhores presentes que se pode ter no ambiente de trabalho. Fazem parte do grupo de remunerações intangíveis para o desenvolvimento da experiência do colaborador. Pessoas que trabalham em um ambiente respeitoso e com propósito são mais felizes, desenvolvem relacionamentos saudáveis com a empresa e entre si e transmitem isso em tudo o que fazem e no atendimento aos clientes.
Roberta Andrade é diretora de Educação Corporativa e sócia da One Friedman
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo
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