Ao longo dos anos, a crise de mão de obra no foodservice se intensificou. Neste momento, a taxa de desemprego no Brasil, é de apenas 6,6%. O empreendedorismo está em alta, e o desejo pelo home office e pela qualidade de vida estão no topo da prioridade dos potenciais jovens trabalhadores do setor. Para desequilibrar de vez essa balança, os consumidores estão ainda mais exigentes sobre a forma como desejam serem atendidos, sempre implacáveis em suas avaliações. Diante desse contexto, as lideranças do foodservice nunca estiveram tão pressionadas. Com um turnover de 77,6% em 2023, segundo dados da Associação Nacional de Restaurantes (ANR), o percentual para 2024 não deve ser muito menor. Isso torna extremamente complexa a tarefa de entregar uma experiência incrível e sem atritos para o consumidor.
A digitalização em sua forma mais ampla, com robôs, totens de autoatendimento, pedidos através de QR Code, entre outros, ameniza a falta de mão de obra. Porém, quando falamos com funcionários do segmento, percebemos que eles gostam de trabalhar em foodservice: adoram servir, encantar, preparar e, dessa forma, tornar os dias das pessoas mais especiais. O fato é que existe um entrave importante a ser discutido de forma mais ampla, e esse entrave são os horários do setor.
Diferentemente do que ocorria no passado, por conta do crescimento dos shopping centers, convencionou-se que negócios de foodservice devem abrir de segunda a domingo, das 10h às 22h. Negócios de rua, como padarias, abrem das 6h às 23h, também de segunda a domingo, enquanto tantos outros, geralmente bares e restaurantes independentes, iniciam às 12h e seguem até de madrugada. Em todos os casos, existem milhares de outras possibilidades de horário, e os funcionários entram antes da abertura e saem, no mínimo, 30 minutos depois do fechamento dos bares e restaurantes.
Historicamente, em grandes capitais, o horário “até de madrugada” contempla até o último cliente deixar a casa, o que cria complexidade para os gestores devido aos custos adicionais. Mas, principalmente, traz desafios para os funcionários, pois o transporte público não está mais disponível e a segurança nos grandes centros e na chegada em suas casas desafia e preocupa. Quem quer iniciar seu trabalho em uma sexta-feira e não saber a que horas voltará para casa?
No mercado internacional, geralmente, os clientes são avisados uma hora antes do fechamento da cozinha, para que possam finalizar seus pedidos. Ao atingir o horário da casa, são convidados a se retirar. Alguns restaurantes têm adotado essa prática aqui no Brasil, sob protestos de muitos clientes, inclusive.
O fato é que os funcionários têm família, desejam ter horários organizados e ir a reunião de pais dos seus filhos, enfim, querem viver. Durante a pandemia, iniciou-se a discussão sobre se negócios de alimentação eram ou não essenciais. E, sim, é um setor essencial. Porém, é necessário entender e debater que restaurante não é hospital. Não precisamos estar 24 horas funcionando. Além disso, existe um setor que se firmou como solução ampliada, que é o delivery, no qual as marcas identificam o interesse dos seus clientes e criam turnos especiais. Novamente, em um contexto desafiador.
Falando como nutricionista, tenho certeza de que nenhum ser humano precisa fazer uma refeição às 2h da manhã. E, que se quiser fazer, poderá buscar, em sua despensa ou freezer, soluções de rápido preparo, inclusive de produtos de marcas que ele gostaria de ter à disposição.
Claro que, empresarialmente, é fundamental buscar captar o máximo de clientes em todas as possíveis partes do dia. Porém, turnos e turnover compreendem uma discussão muito valiosa que devemos desenvolver de forma madura, inteligente e que envolva as três partes: empresas, funcionários e, principalmente, clientes.
Precisamos educá-los. É fundamental que tenhamos protagonismo na construção de hábitos que permitam a continuidade do setor. No varejo, em um futuro não muito distante, ser atendido por um ser humano se cristalizará como um grande luxo. No foodservice, gente é um elemento essencial para a experiência do consumidor. Vamos protagonizar análises e evoluções maduras e bem estruturadas.
Cristina Souza é CEO da Gouvêa Foodservice.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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