O tema tornou-se dominante nestes dias por tudo que envolve as discussões sobre taxação, proibição, contenção ou nova regulamentação sobre a remessa de produtos entre países pelos canais digitais.
E, como tudo, existem dois polos a serem considerados. O primeiro e mais preocupante é o do cross border de produtos que chegam com preços aviltados por conta da sonegação de impostos.
O perfil jovem e pressionado por questões de renda e crédito da população brasileira abraçou de forma instantânea as opções, especialmente as de origem asiática, pelo apelo decisivo do baixo preço, em boa parte pelo não pagamento de impostos e taxas que cria uma enorme desigualdade competitiva com as empresas locais.
Os números envolvidos no que é conhecido como cross border no mundo são impressionantes e crescentes, pois decorrem de uma realidade que não se conseguirá evitar: a grande massa consumidora irá cada vez mais buscar alternativas para comprar mais por menos. É o chamado varejo de valor, com crescente participação aqui e no mundo.
No cenário mais amplo do e-commerce, as receitas a serem geradas este ano no Brasil devem alcançar de US$ 59 bilhões, um crescimento de 149% sobre o ano de 2019, pré-pandemia, segundo os dados da Statista Digital Market Insights.
Estudo realizado para o Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV) em 2020 estimou que 16,5% desse total teria como origem o cross border.
O estudo, focado no dimensionamento da Informalidade no varejo, estimou que naquele ano o total dos impostos não recolhidos no setor seria entre R$ 170 e R$ 220 bilhões, sendo que 22% desse total ocorreriam no e-commerce.
Dados mais atuais levantados também pelo IDV mostram que em 2022 entraram no País perto de 178 milhões de remessas internacionais, via postal ou expressa, com um crescimento de 122% sobre 2019, reforçando a aceleração desse negócio nesses últimos anos e o aumento do potencial de tributos que deveria ser recolhido.
A questão é que existe o cross border do bem e o do mal. Só para simplificar.
Consumidores brasileiros têm comprado nas maiores lojas virtuais do mundo, ampliando suas alternativas de marcas, modelos, produtos, categorias e segmentos e recebendo corretamente os produtos por meio de operações integradas envolvendo logística, câmbio, entrega, devolução garantida e pagando todos os impostos e taxas regularmente.
Essa é a situação se pretendemos ser uma economia aberta, com vias de duas mãos, e isso tenderá a crescer porque demanda cria mercado e essa é uma das regras fundamentais dos negócios.
De outro lado, existem empresas e pessoas que, burlando a legislação com os mais diferentes artifícios, conseguem trazer produtos sem pagamento de impostos, pois a estrutura de verificação existente consegue monitorar apenas perto de 2% de tudo que entra no País por esses mecanismos, especialmente via Correios.
Por esse caminho existe uma inundação de produtos de baixo valor comprados de sites ou pessoas físicas por aqui que adquirem e revendem que atuam à margem da lei, sem pagamento dos impostos que empresas locais devem recolher, o que cria uma enorme desigualdade competitiva com as demais empresas regularmente atuando.
A questão que tem se agravado, como mostram os números, é que alguns marketplaces abrigam essa contravenção e não exercem, como deveriam, o controle de quem vende o que e como sob sua marca.
O resultado é o que aí está. Uma enorme e impopular polêmica, pois, na prática, significa aumentar o preço do que é vendido sem recolhimento de impostos para um consumidor ávido por pagar menos.
A existência dessa opção não controlada contribui para a asfixia das empresas e negócios operados formalmente no País, gerando emprego e renda em outros mercados e deixando de fazê-lo no Brasil.
Agora o governo, percebendo a oportunidade e a necessidade de tributar, acordou para o problema e resolveu agir. E, como era de se esperar, está sendo criticado por cumprir seu papel, que terá como efeito a redução desses volumes e o aumento dos preços para o consumidor final. Impopular, porém necessário.
Em termos realísticos, será quase impossível controlar tudo que deveria ser controlado e o contrabando está aí para provar essa tese. Mas é de fato fundamental agir e restabelecer as bases competitivas corretas e equivalentes.
De outro lado, e tão importante quanto, seria oportuno que as empresas brasileiras despertassem para o enorme potencial do cross border como canal de distribuição de produtos, marcas e conceitos brasileiros no mercado internacional.
Existe um amplo espaço para marcas e produtos de Boticário, Natura, Alpargatas-Havaianas, Track&Field, Arezzo e Grendene, só como exemplo. Para não falar em tudo que o próprio varejo poderia oferecer além do que mais possa envolver alimentos e bebidas no mercado internacional pelo caminho do cross border.
É verdade que algumas dessas empresas já começaram um trabalho nessa frente, mas ainda tímido ante o tamanho e a demanda do mercado internacional.
Se pensarmos só no contingente de brasileiros que vivem no exterior já seria um incrível mercado. E crescente.
Mas é muito mais ambiciosa a visão do desenvolvimento desse canal de forma ampla, pois é por aí que o mercado continuará a crescer de forma irreversível pelas facilidades e alternativas que cria, pela necessária abertura de mercados que também demandamos e, mais importante, porque é tudo que o consumidor mais global prefere.
Vale refletir e agir.
Nota: Nesta semana, terça e quarta-feiras, dias 18 e 19 de abril, vai acontecer o Digitail, analisando, debatendo e promovendo as evoluções que acontecem no e-commerce e no varejo considerando especialmente as inovações precipitadas pela transformação tecnológica e digital, o cross border e seu impacto nos negócios.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
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